A narrativa de Luis Nassif sobre um direito de resposta contra a revista Veja que demorou 12 anos é um retrato do caos reacionário em que está atolado o sistema judiciário brasileiro. Nas entrelinhas, é possível ver toda a contribuição de Sérgio Moro e da Rede Globo para afundar ainda mais a Justiça brasileira. Sérgio Moro defende que o juízes devem estar acima da lei, quando diz que a “interpretação do juiz” (seja lá o que isso for) está acima da lei. Veja abaixo quanta interpretação. Nas entrelinhas desse texto também está a microfísica jurídica, toda sua ramificação, para manutenção do golpe de Estado de 2016, que foi chancelado pelo judiciário. A microfísica se dissemina pelas instâncias e pelo tempo histórico. Enfim, a mesma Justiça que demorou 12 anos para autorizar um direito de resposta, agiu em 6 meses para julgar o ex-presidente Lula em 2ª Instância.
.Por Luis Nassif.
Hoje a revista Veja publicou um direito de resposta que solicitei há 12 anos. Foi para responder a ataques de Diogo Mainardi, me acusando de privilégios junto ao BNDES e de chantagear um Secretário de Segurança de São Paulo. 12 anos! Qual o efeito dessa decisão? Apenas o de reabrir velhas chagas.
Havia uma lógica por trás dos ataques de Mainardi, que levei algum tempo para entender.
A mídia estava em crise. Entrou nos anos 2.000 com alto grau de endividamento, devido às dívidas em dólares contraídas nos anos 90, em um momento de bonança.
Ao mesmo tempo, sabia que era questão de tempo para que a Internet abrisse de vez as barreiras de entrada aos grupos estrangeiros. Na época, a grande ameaça eram as empresas de telefonia, muito maiores. As redes sociais ainda eram incipientes.
Sabia-se que o modelo tradicional de mídia estava em crise, era questão de tempo para acabar. E não se tinha a menor ideia sobre o que viria depois.
Nesse impasse, Roberto Civita trouxe a fórmula tentada por Rupert Murdoch. Tratava-se de reeditar o discurso do inimigo externo, pedir emprestado a retórica da ultradireita, empreender uma guerra sem quartel para que a mídia passasse a ser a principal protagonista política. Com seu candidato vitorioso, teria condições de impor restrições aos avanços dos novos modelos de notícia que apareciam no bojo da Internet.
Encontrou as empresas em uma transição, com novas gerações da Folha e das Organizações Globo sem a liderança dos fundadores. Não foi difícil convencê-los.
A tática adotada foi da guerra cultural sem quartel, algo que foi repetido na Argentina com o Clarin.
Explico. O universo da mídia é composto por “celebridades”, jornalistas, artistas, intelectuais, especialistas que se tornam referências. Os tempos de relativa diversidade dos anos 90, impulsionados pelas diretas e pela má-consciência da mídia, pelo apoio à ditadura militar, deixaram um legado de jornalistas e intelectuais que não endossariam o discurso de ódio que se desenhava.
Teve início, então, uma ofensiva para afastar jornalistas não alinhados, cujo principal instrumento era justamente a coluna de Mainardi, na Veja. A revista vivia o auge. Com a direção intelectual de Roberto Guzzo, transformou-se em uma máquina de moer reputações. Do alto de uma tiragem de 2 milhões de exemplares, produzia assassinatos semanais. Ninguém era poupado, de escritores e artistas considerados de esquerda.
Sucessivamente, Mainardi atacou Franklin Martins, na época o principal comentarista político da TV Globo; Tereza Cruvinel, titular da coluna de política do jornal O Globo; e eu, colunista de Economia da Folha e titular de programa na TV Cultura.
No caso de Franklin e Tereza, havia uma clara concatenação com a direção de O Globo. Na mesma semana do ataque de Mainardi, ambos foram demitidos. Atacou também Elio Gaspari, por um artigo no qual não endossava totalmente a campanha de ódio da mídia. Na mesma hora, Gaspari reformulou sua opinião, sabendo que a ideia do ataque era montar uma armadilha que justificasse também seu afastamento.
No meu caso, houve uma demora maior. No primeiro ataque de Mainardi, respondi mostrando que, na mesma edição, havia cinco páginas de publicidade do Banco Opportunity, de Daniel Dantas. Os ataques de Mainardi visavam defender o Opportunity.
No segundo ataque, na semana seguinte, a Folha impediu minha resposta. Não havia clareza, ainda, sobre o que ocorria. Sabia, apenas, que havia movimentos de placas tectônicas se movendo na mídia e que meu tempo na Folha estava no fim. Com o tempo, ficou claro o alinhamento da Folha com Dantas.
Saí da Folha algum tempo depois. Julgava que havia uma pressão de Dantas. Levou algum tempo para cair a ficha de que o responsável foi André Esteves, do Pactual. Mas esta é outra história.
Saindo da Folha, me preparei para a guerra com a Veja, mas levei uns 6 meses para entender todas as peças do jogo.
Era evidente que, ao permitir ataques contra seus jornalistas, O Globo e a Folha estavam acertados com Civita. Mas qual a lógica por trás desses ataques?
O jogo foi clareando progressivamente. Uma das peças centrais foi o caso Tales Alvarenga, ex-diretor de redação, que se tornara uma espécie de diretor responsável, com uma coluna semanal. Foi o primeiro a introduzir o estilo de ódio que se tornaria dominante nos meses seguintes.
Quando o jogo ficou claro, comecei a escrever a série “O caso de Veja”. Àquela altura, Caio Túlio Costa assumira a direção do iG e me convidou para levar o blog para lá.
Foi uma guerra sem quartel. Veja contratou o colunista Reinaldo Azevedo na época, ao lado de Mainardi, o propagador do estilo Olavo de Carvalho na mídia. Valendo-se do amplo espaço do portal da Veja, Azevedo produziu o equivalente a 500 páginas de ataques a mim, ao lado de Mainardi, que continuava com seus ataques.
Foi um jogo sujo, onde o maior desafio era não entrar nas baixarias dos ataques. O que mais me impressionou era o temor generalizado que Veja infundia em todos.
Passei os anos 90 e metade dos anos 2000, enquanto estive na Folha, na defesa das vítimas dos linchamentos de mídia. Fui o responsável por virar o caso Escola Base, Bar Bodega, a desmascarar o jogo de Paulo Maluf com os precatórios, a defender Chico Lopes, quando sua casa foi invadida, a defender inúmeras pessoas vítimas da máquina de moer reputações da mídia. Quando começaram os ataques da Veja, fiquei só. Ninguém tinha coragem de ir contra a máquina de assassinar reputações que a revista se tornara.
O único consolo era o apoio dos leitores no Blog. Lembro-me, depois de um dia extenuante, um leitor do interior de Goiás pedindo que não desanimasse, oferecendo a bicicleta dele para uma rifa, para me ajudar na defesa.
Foi um período de poucos blogs, mas que me convenceu definitivamente da importância de se dar voz aos invisíveis.
Não havia limites para os ataques.
Antes de começar a guerra, reuni minhas duas filhas mais velhas e minha esposa na época, e contei o que pretendia fazer. Disse que afetaria a vida de todas. Recebi luz verde:
- Pai, se você não enfrentar os ataques, você vai morrer de desgosto.
Mas foi um desafio cruel. As caçulas tinham 8, 9 anos, iam para a escola e não sabíamos o que chegaria a elas. Chegaram a insinuar até que eu frequentava saunas gays, como uma espécie de defesa, caso quisesse explorar maledicências que circulavam contra um dos agressores.
Minha ex entrou em depressão. Cometi a imprudência de reclamar contra as baixarias e expor os estragos que estava trazendo à família. Mas o alerta serviu apenas para que os ataques aumentassem. E não havia uma voz sequer para se solidarizar, nem mesmo aqueles que eu havia defendido.
Pensava, inicialmente, que os ataques não eram de conhecimento de Civita, por ser pela Internet. Depois, caiu a ficha de que eram comandados integralmente por ele. Já estava em andamento a construção do discurso de ultra-direita.
Lembro-me de um episódio, no qual Azevedo atacou a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) por financiar um trabalho de redução de danos na saúde mental. Acusou de traficante a orientadora da tese – uma professora de 70 anos. A pressão era tão intensa que a Fapesp quase recuou e cassou a bolsa de pesquisa. Liguei para a direção, na época, alertando que o recuo significaria a desmoralização da instituição.
Depois percebi que os assassinatos de reputação visavam criar uma aura de temor em torno da revista, para possibilitar negócios variados de Civita, na disputa de livros didáticos, cursos apostilados, na venda de capas para a indústria farmacêutica e outras mais, tudo devidamente retratado na série.
Quando a série saiu, o jogo piorou, mas apareceram aliados dos mais inesperados. Os jovens pioneiros da Internet descobriram que se houvesse links para a matéria em vários blogs, ela subiria no ranking de buscas do Google. Montaram a operação e, cada vez que alguém digitava a palavra “VEJA”, o Caso de Veja aparecia no segundo lugar na busca.
A Abril passou recibo, ao tentar bloquear a série nos seus servidores.
Percebi que para encerrar aquele inferno, a única maneira seria direcionar as críticas às pessoas físicas dos jornalistas envolvidos na guerra suja. Atirar contra a Veja teria o mesmo resultado de uma estilingue contra um tanque.
A reação da Abril consistiu em abrir cinco processos simultâneos, em nome de quatro jornalistas e dela mesmo, e me chamar para conversar. O enviado foi Sidnei Basile, excelente pessoa e assessor especial de Civita.
Ele entrou em contato através de minha irmã, indagando se poderia falar com ele. Claro, era um velho companheiro. Marcamos um almoço com uma condição:
- Sidnei, na primeira parte da conversa você é o assessor do Civita. Na segunda parte, é um velho companheiro, que vai me explicar que loucura é essa que se apossou da revista.
Na segunda parte, ele admitiu a imprudência da redação, em se envolver com os arapongas de Carlinhos Cachoeira. A matéria que assustou a Abril havia sido justamente um dos capítulos da série, no qual mostrava as ligações da sucursal de Brasília com o bicheiro.
A proposta de Basile era clara. Se eu parasse de atacar a Veja, eles retirariam os processos.
Lembrei de cada ataque que saía na revista, da angústia de ligar para as tias idosas, para as irmãs e as filhas, acalmando-as. E a tensão esperando o próximo ataque, E recusei.
Explodiram as ações.
Minha defesa ficou nas mãos de Tais Gasparian, Marco Antonio Barbosa e Samuel MacDowell Figueiredo. Levantei todos os ataques que havia sofrido e, mesmo não sendo advogado, julguei que a estratégia de defesa seria considerar a revista uma organização hierárquica. Ou seja, não teria como comprovar que as críticas ao diretor da publicação eram uma reação aos ataques que sofria de seus subordinados, se não ficasse claro que Veja era uma estrutura hierárquica rígida, na qual nada saía sem controle expresso da direção.
Na época, consultei Manuel Alceu, o maior especialista no tema, e ele concordou. Ficou de dar um parecer para unificar as ações.
Os advogados não toparam. Não insisti por confiar na sua experiência. Nem questionei linhas de defesa que pareciam mais um copy-paste de ações habituais de defesa de jornalistas. Apenas tempos depois descobri que havia a possibilidade da reconvenção – isto é, o réu acusar o acusador apresentando elementos que caracterizariam o ataque prévio -, mas que não foi utilizado.
Passamos pelo desafio da 1a instância. No meio do caminho, fui chamado a uma reunião no escritório, onde Samuel McDowell anunciou que estavam deixando o caso. A razão óbvia era não se indispor com a mídia, já que a guerra tinha se espalhado por outros veículos. Deu outra explicação qualquer e tirou o corpo.
E aí entro na questão do direito de resposta.
O Supremo Tribunal Federal tinha acolhido a pretensão de Ayres Brito, de revogar a Lei de Imprensa. Não houve nenhuma preocupação com os efeitos da medida sobre o mundo real, o direito de resposta, os limites das condenações pecuniárias etc.
Minha ação foi protocolada na Vara de Pinheiros. Durante meses e meses não se tinha decisão, havia toda sorte de protelações.
Na época, escrevi um artigo criticando as manobras da juíza para não conceder o meu direito de resposta. Por engano, troquei o nome da juíza. A juíza citada incorretamente abriu uma ação por difamação. Ou seja, considerou-se difamada por ter-lhe atribuído decisões de uma colega sua. A ação caminhou, fui condenado a indenizá-la. E o direito de resposta não saía.
Agora, saiu. Para que servirá? Para nada.
Durante todo esse período, as acusações ficaram girando na Internet e virei alvo de todo tipo de lawfare. Meu contrato com a TV Cultura foi rompido pelo Paulo Markun, por críticas que fiz, no meu blog, às manobras de José Serra com a Sabesp.
Só depois de rompido o contrato com a Cultura, recebi uma proposta da TV Brasil, que estava sendo montada. Na época, sempre aparecia como um dos três finalistas em jornalistas impresso e eletrônico nas votações do Comunique-se. Fui acusado pela Folha de ter sido contratado sem licitação. A repórter foi incumbida de ouvir a Fundação Padre Anchieta sobre isso. Ouviu a resposta óbvia, que não havia licitação para a contratação de jornalistas. A informação foi suprimida pela então editora Vera Magalhães.
A pressão era tão grande que, em 2010, a TV Brasil suspendeu o pagamento enquanto não entregasse todos os programas até julho, para, então, romper o contrato. Só voltou a me recontratar 3 meses depois.
Todos os passos que dei, inclusive enfrentando a máquina de assassinar reputações da antiga Veja, foram em defesa do jornalismo.
Dias atrás participei de uma live e um espectador comentou. Disse que era jovem e sempre achou que eu era um bandido total. Só mudou de opinião quando passou a buscar mais informações.
O único efeito da publicação do direito de resposta foi relembrar os momentos cruciais e me permitir uma auto-análise: sabendo tudo o que aconteceria posteriormente, eu tomaria as mesmas decisões novamente?
Aí vêm as palavras de minha filha:
- Pai, se você não enfrentar os ataques, vai morrer de desgosto.
Aqui, o link para a série O Caso de Veja.
E uma palestra que dei na CEUB, em Brasili
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