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A finitude da vida e a necessidade de movimentar: o retrato íntimo de Antonio Dias

A finitude da vida e a necessidade de movimentar: o retrato íntimo do MAM sobre a obra de Antonio Dias

.Por Gabriel San Martin.

Não são poucos os momentos da vida em que o processo de se conformar à finitude humana vira um obstáculo. O exercício de desenvolver resignação e conformação sobre a nossa incompletude, sobre essa trajetória repleta de vitórias e derrotas a que estamos submetidos, não é simples. Antonio Dias, em seus 74 anos de vida, foi intenso. Trabalhou com uma diversidade de linguagens enorme e compreendeu visceralmente cada uma delas. Não se restringiu a viver e criar no Brasil, fez questão de passar por vários lugares, de buscar sempre experimentar tanto em sua arte quanto em sua vida. Lidou com temas que variavam da libido até a ditadura militar. Construiu, a partir dessa ousadia, desse experimentalismo e dessa originalidade, uma trajetória de destaque na história da arte brasileira.

(Antonio Dias – The ilustration of the art /gimmick -mam – div)

Antonio Dias nasceu na Paraíba, em 1944. Muda-se para o Rio de Janeiro em 1958, com seus 14 anos. Logo após a mudança, começa a frequentar aulas com o artista Oswaldo Goeldi; o qual vai exercer clara influência na obra de Dias, com ênfase sobre o uso de cores escuras nos períodos iniciais de seu trabalho.

Dentre os tantos eventos de destaque na carreira de Antonio Dias, podemos citar alguns dos mais marcantes. Já em 1967, com 23 anos, o artista é notado pelo crítico de arte Mário Pedrosa, que assimila o trabalho de Dias a algo semelhante a um pop art sertanejo. Em 1972, Antonio Dias recebe a bolsa Guggenheim, em Nova York, onde dá continuidade à sua série iniciada em Milão nomeada Illustrations of Art. Mais tarde, em 1981, volta para Milão, onde se relaciona com o movimento de Transvanguarda. Nos anos seguintes, além de seguir trabalhando intensamente na construção de sua longa obra, o artista leciona em várias escolas de arte – como é o caso da Universidade Federal da Paraíba e da State Academy of Fine Artes, na Áustria.

(foto autor -div)

É no contexto de uma obra de tanto destaque dentre os artistas das gerações de 60 a 80, que, ainda em luto pela morte recente do artista, o Museu de Arte Moderna de São Paulo exibe, agora, de 14 de outubro a 21 de março de 2021, a exposição “Antonio Dias: derrotas e vitórias”, curada por Felipe Chaimovich. A exposição representa a primeira retrospectiva da obra do artista desde a sua morte e faz parte da rede de exposições da 34° Bienal de São Paulo.

Reunindo uma coleção de trabalhos compilados pelo próprio artista, o museu apresenta o olhar de Antonio Dias sobre a sua obra. Como já era de se esperar, Dias se mostrou capaz de colecionar a si mesmo como ninguém. As obras fundamentais de toda sua trajetória constituem essa coleção e foram, depois, pormenorizadamente selecionadas para compor a exposição. Do trabalho Nota sobre a morte imprevista, aclamada por Hélio Oiticica como crucial para compreensão dos rumos tomados pela arte brasileira, até Anywhere is My Land, que caracterizou o início da fase abstrata do artista, estão ambos, hoje, expostos no MAM.

Baseada em dados biográficos, a exposição parte da proximidade de Dias com o presente. Enquanto a sua obra neofigurativa, da década de 60, venha posicionada no final do trajeto expositivo, a escultura móvel Seu Marido, de 2002, pode ser vista já no início do corredor que separa a sala da exposição e a entrada do museu. Com um de seus trabalhos mais recentes constituindo a primeira face da exposição, lembro-me do quanto essas derrotas e vitórias ainda residem no presente. Como já disse uma vez Paulo Sérgio Duarte, a obra Seu Marido é um retrato do homem contemporâneo: “Vive sentado, nunca fica em pé, mas de vez em quando tem uns tremeliques”. E essas derrotas atuais pelas quais viemos e estamos passando, de longe, não exigem uma mobilização que consiste meramente em “uns tremeliques” – por mais que esses tremeliques venham constituindo toda a mobilização social de muitos.

A escolha de Felipe Chaimovich sobre colocar esse trabalho logo na entrada da exposição, todavia, leva-me também a pensar sobre a vivacidade por trás desses tremeliques de Seu Marido. Vivemos nesse ciclo de derrotas e vitórias, mas sempre com uma potência de movimento transformativo: a nossa inquietude proveniente de uma vontade de transformar. Todo grande movimento parte de um tremelique. Batalhas serão travadas, dificuldades aparecerão e trombaremos com impasses no decorrer de toda a vida. Contudo, Antonio Dias lembra que devemos continuar sempre em movimento. E, talvez, antes de experienciarmos todo esse ciclo contínuo de derrotas e vitórias que compõem o trajeto expositivo, seja importante lembrarmos dessa nossa inquietude, dessa potencialidade de vida desde o começo.

(seu marido – antonio dias – MAM – div)

Esse destaque dado a Seu Marido, entretanto, deixou-me bastante intrigado durante a visita à exposição. Depois de não perceber a escultura fálica se movendo em momento algum no decorrer de toda a minha permanência no espaço expositivo, descobri que a obra se encontrava desligada. Fui informado, então, por uma funcionária que a obra não se mantém constantemente “ligada” enquanto exposta ao público. Sabendo disso, lembrei-me imediatamente das reflexões do filósofo norte-americano Arthur Danto sobre como algumas pequenas mudanças são capazes de transformar todo o significado de uma obra de arte. Para isso, basta perceber que a maior parte do que escrevi até aqui é referente à relação entre a mobilidade de Seu Marido e as premissas da exposição. Da mesma forma que no segundo capítulo de O Que é a Arte (2013), Danto questiona se a penumbra retirada do teto da Capela Sistina era sujeira ou significado, questiono-me se a retirada da mobilidade de Seu Marido leva consigo o discurso por trás do trabalho.

(foto autor – div)

Se Danto pensou em uma obra renascentista para refletir sobre a importância dos pequenos detalhes na constituição do significado, estou convicto de que os pormenores se tornam algo ainda mais fundamental em uma obra tão experimental e conceitual como a de Antonio Dias. Enquanto uma figura de fisionomia fálica imóvel, é possível afirmar que Seu Marido corporifica o mesmo significado de quando móvel? Se a conclusão for positiva, o que exatamente evoca esse movimento atribuído à obra por Antonio Dias? Obras de uma dimensão conceitual como Seu Marido são tais que a alteração de um gesto é capaz de transformar todo o trabalho.

Apesar dessas curtas ressalvas relativas ao cuidado sobre a dimensão conceitual da obra de Antonio Dias, seria desonesto não mencionar que a exposição é capaz de cultivar e explorar de forma exemplar uma intimidade com a obra do artista. As nossas derrotas e vitórias são dadas desde o hábito de se escanhoar diariamente a si mesmo no ato de fazer a barba, mesmo reconhecendo a incapacidade de resolver esse problema de forma definitiva, até as lutas da seleção natural e das guerras políticas.

Antonio Dias, todavia, recorda que, independente da luta, é fundamental se movimentar. O lugar histórico que Dias ocupa na arte brasileira é definitivamente merecido, e a exposição é capaz de explorar a potencialidade do artista em seu âmago.

Gabriel de Campos Barrera San Martin – Graduando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador em estética e crítica de arte.

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