.Por Ana Aranha.
Após revelações em matéria da Repórter Brasil e da Agência Pública, o comitê de Ética da Unicamp suspendeu pesquisa conduzida em laboratório da Faculdade de Ciências Farmacêuticas que estava sendo usada para liberar o uso de agrotóxico letal.
A reportagem denunciou que, antes mesmo de ser concluída, a pesquisa era peça central do lobby para reverter a proibição do paraquate, classificado como “extremamente tóxico” e um dos agrotóxicos mais usados no Brasil. O produto está com data marcada para ser banido em setembro deste ano, segundo decisão tomada pela Anvisa em 2017 com base em evidências de que ele pode gerar mutações genéticas e a doença de Parkinson nos trabalhadores rurais.
A poucos meses da proibição, porém, o lobby pressionava a Anvisa pela reversão do veto usando como argumento um controverso estudo financiado pela Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja) – que representa o setor que mais usa o paraquate.
A pesquisa determinaria se o produto pode ser encontrado na urina dos trabalhadores que o aplicam dentro de tratores de cabine fechada no Mato Grosso. Entre as muitas falhas apontadas na metodologia, ela não incluiu outras pessoas que também são expostas ao produto, como os trabalhadores que fazem o transporte e o tratamento dos grãos, as comunidades do entorno e os trabalhadores de fazendas onde não há tratores com cabine fechada.
Revelando seu entusiasmo pela segurança do uso do agrotóxico, as declarações dadas pelo médico e professor aposentado da Unicamp Ângelo Trapé para a reportagem geraram questionamentos entre pesquisadores da instituição. “O contato do trabalhador que faz a pulverização é nulo. É tudo mecanizado, trator fechado, vedado”, afirmou Trapé, que questionou a proibição do produto antes mesmo de concluir a sua pesquisa.
Dois dias após a publicação da reportagem, o departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, onde Trapé foi professor, publicou uma nota de repúdio afirmando que já foi “bem estabelecida a associação do agrotóxico com diversas doenças relacionadas ao trabalho como fibrose pulmonar, insuficiência renal, Doença de Parkinson e danos genéticos”.
A nota manifesta ainda “indignação” pelo uso da pesquisa para reverter a proibição do paraquate e afirma que a citação de Trapé como professor aposentado da universidade caracteriza “abuso do uso de imagem da Unicamp, em busca de algum grau de legitimidade para estudos que claramente colidem com os interesses da saúde coletiva”.
A nota foi posteriormente endossada pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas, onde fica o laboratório em que a pesquisa estava sendo conduzida. O texto reforça a preocupação da instituição com o fato de que o “paraquate, comprovadamente, causa graves intoxicações ocupacionais e acidentais aos trabalhadores rurais”.
Por fim, o Comitê de Ética da universidade colocou o assunto em pauta e decidiu, nesta quarta dia 29, pela suspensão da autorização da pesquisa em questão “por haver indícios de omissão de informações por parte dos envolvidos”. O órgão não detalhou quais são essas informações (leia nota completa).
A reportagem apurou que uma pesquisa parecida com a de Trapé fora reprovada pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) no fim de 2019, meses antes da submissão da pesquisa à Unicamp. A versão rejeitada pela Conep continha informações que foram cortadas da versão apresentada à universidade paulista.
A rejeição da pesquisa pela Conep foi pauta de reunião que ocorreu na Anvisa em 23 de outubro, quando o coordenador geral da comissão Jorge Venâncio foi chamado pelo diretor Renato Porto para esclarecer o motivo da reprovação. A intenção do encontro era entender quais as falhas da pesquisa para que um outro projeto pudesse ser apresentado.
No dia 5 de novembro, o mesmo diretor da agência reguladora recebeu outro membro do Conep para discutir a pesquisa. Desta vez, também participaram do encontro representantes da Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista.
Pouco mais de um mês depois, em 11 de dezembro, a pesquisa de Ângelo Trapé era aprovada pelo Comitê de Ética da Unicamp. “Imagino que eles não conseguiram resolver os problemas apontados, então fizeram um projeto mais simples da mesma pesquisa para passar na Unicamp”, afirma uma fonte que teve acesso às informações sobre todo o processo de reprovação na Conep.
Trapé confirmou que sua pesquisa é uma versão de um projeto anteriormente rejeitado pela Conep. Ainda durante a apuração da matéria sobre o lobby, ele explicou à reportagem que a Aprosoja lhe procurou no fim do ano passado, depois que a pesquisa fora rejeitada pela Conep. A intenção era de que ele tentasse aprovar o projeto pela Unicamp, o que de fato ele conseguiu.
Após a publicação da matéria, o Comitê de Ética da Unicamp entrou em contato com a Conep e obteve os motivos pelos quais a pesquisa fora reprovada. Essas informações não foram reveladas nem pela Conep ou pela Unicamp. Pesquisadores que tiveram acesso à pesquisa e que não podem se identificar afirmam que são muitas as falhas, elas vão desde a metodologia até os procedimentos de segurança com as amostras colhidas.
Procurados pela reportagem, Ângelo Trapé não respondeu ao novo contato. A Aprosoja manteve a mesma posição manifestada anteriormente e afirmou que não vai se pronunciar sobre a suspensão da pesquisa que financiou.
Anvisa segue tentando votar o adiamento da proibição
As reuniões na Anvisa para tratar sobre a pesquisa são um breve episódio de uma longa sequência de encontros promovidos pelo lobby pró paraquate desde que sua proibição foi publicada. Desde 2017, foram mais de vinte reuniões na agência reguladora com as maiores multinacionais do setor, como a Syngenta, e representantes dos maiores exportadores do Brasil, como a Aprosoja. A agenda foi compilada pela Repórter Brasil e Agência Pública.
Um dos períodos de maior intensidade nas reuniões foi justamente durante os meses em que a pesquisa foi submetida e reprovada pelo Conep. Foram seis reuniões na agenda oficial dos diretores da agência com o tema do paraquate em outubro e novembro de 2019.
Os encontros sobre o produto voltaram a acontecer neste ano, com a Syngenta e a bancada ruralista em fevereiro e março. Em 31 de março, uma possível revisão do prazo de proibição devido à pesquisa entrou oficialmente na pauta da agência, soando o alerta do Ministério Público Federal.
O procurador federal Marco Antônio Delfino de Almeida, que atua no Mato Grosso do Sul, teve acesso às informações preliminares sobre a pesquisa e conseguiu uma liminar na justiça proibindo a Anvisa de fazer mudanças na data de proibição antes que os resultados da pesquisa fossem entregues.
Mas a Anvisa continua recorrendo da decisão e conseguiu, no dia 17 de julho, derrubar a liminar do MPF. Ou seja, a agência reguladora disputa na justiça o direito de adiar a proibição do paraquate mesmo antes que novas conclusões sejam apresentadas.
Além da pesquisa de Ângelo Trapé, o lobby financia outro estudo sobre o Paraquate na Inglaterra. As produtoras de agrotóxicos se juntaram no que chamam oficialmente de Força-Tarefa Paraquate, grupo que reúne 12 fabricantes do produto. A Força-Tarefa financia pesquisa que vai testar a capacidade do produto provocar mutação nos genes de ratos. O estudo está sendo conduzido em um laboratório privado inglês, o Covance Laboratory.
Assim como a pesquisa de Trapé, os resultados só devem ficar prontos depois de setembro, data da proibição no Brasil. O atraso é o argumento central do lobby para adiar a proibição e a Anvisa está, atualmente, desimpedida pela justiça de tomar essa decisão. (Da Agência Pública/Repórter Brasil)