No vão entre a patroa e a babá, os filhos do Brasil continuam a cair mortos
.Por Alessandra Caneppele.
O que a morte estúpida do pequeno Miguel conta sobre o nascer e o ser de todos nós brasileiros?
Não passou despercebida à antropologia dedicada ao Brasil a ambiguidade dos colos nos quais somos criados: retratado no colo da sua mãe preta de leite e depois seca, o filho da casa grande ao mesmo tempo liberava a senhora sua mãe do trabalho de sua criação e privava os filhos da escrava da presença e cuidados maternos.
Essa estrutura persiste até hoje na maior parte das casas minimamente abastadas dos brasileiros e nela vemos, por um lado, uma criança pobre a quem se nega o direito aos cuidados maternos e, pelo outro lado, uma criança rica que crescerá em um colo do qual ela é o patrão (portanto, em uma situação de inversão de poder e de transformação mercantil do primeiro laço de cuidado). Essa dupla condição de criação não é de modo algum irrelevante para os destinos de ambos os lados – e a atenção a essa duplicidade materna parece imprescindível para a compreensão e superação das origens do mal-estar social do Brasil .
No filme Mãe só há uma a cineasta Ana Muylaert nos convida a refletir sobre esse duplo colo nacional. Partindo da trama de uma mãe proletária que rouba o filho de uma mãe da burguesia, a cineasta conta sobre uma dupla impossibilidade materna: para a primeira mãe, proletária, a maternidade não poderia ser senão um crime e, como tal, passível de punição, na medida em que a sociedade não lhe reconheceria o direito a sua maternidade; já para a segunda mãe, a rica, a maternidade não poderia ser senão um ideal abstrato, um puro desejo que não se efetiva em um reconhecimento pelo próprio filho.
Ambas, por razões diametralmente opostas, não podem exercitar a práxis do cuidado na qual elas se realizariam de fato como mães – na primeira porque tal práxis é socialmente deslegitimada; na segunda, porque essa mesma é socialmente desqualificada (a primeira não tem o direito a esse exercício; a segunda não tem o dever a ele).
O drama da morte de Miguel expõe exemplarmente essa dupla condição de impossibilidade da maternidade brasileira. Se, de um lado, Mirtes, a empregada, é a mãe à qual se nega o exercício legítimo de sua maternidade, do cuidar e criar dignamente seu filho, do outro lado encontramos a patroa, Sari, que, como bem mostram as imagens dela apertando o botão que catapultou o menino à queda e à morte, certamente desconhece o exercício da maternidade pois, se de fato cuidasse de seus próprios filhos, jamais seria capaz de tal descuido com os filhos de uma outra.
Ou seja: ao terceirizar os cuidados de seus filhos, Sari sabe sobre como exigir que um outro cuide do seu filho, mas ela mesma desconhece o que seja cuidar. A presença da manicure no momento do crime revela emblematicamente a sinhá em seu exercício característico: manter unhas perfeitas que provam sua distância dos cuidados com a pia, tanque e também fraldas – afinal, não cabe a ela cuidar, mas apenas exigir que dela cuidem!
Assim duas maternidades coabitam o Brasil: uma pobre, descuidada, e outra gorda, que descuida – uma explorada; outra que explora. Mas nessa dupla maternidade ambos os filhos sobrevivem capengas, os do povo e os da elite, pois ambos, por razões diametralmente contrárias, crescem desconhecendo qualquer vivência de cuidado – os primeiros porque se criam sem cuidados (sobrevivem até no esgoto!); os segundos porque, criados na lógica privativa da mercadoria, não poderão senão desconhecer a lógica do cuidado.
E, como bem mostra a revelação de que a prefeitura de Tamandaré pagava o salário da empregada da família, vemos também como o Estado se presta aqui a ser fraudado para que a elite possa barganhar sem limites em nome dos seus direitos a ser cuidada.
A política recente de regulamentação do trabalho doméstico, desfazendo o mito da empregada como um “membro da família”, uma “segunda mãe” que se quer tudo fazendo “por amor”, revirou as entranhas duplas nas quais nasce o ser antropológico brasileiro e revelou em seu avesso a preguiça da mãe burguesa que não pratica sua própria maternidade senão como uma farsa – e, talvez, esse ventre burguês ferido em seus valores por tal golpe tenha revidado parindo os monstros que agora nos assombram passeando livremente pelas ruas de nossas cidades e destruindo todo projeto coletivo de país (lembremos que Bolsonaro foi o único deputado que discursou e votou contra a PEC das domésticas).
Ora, se a periferia precisa de uma política que garanta a ela o direito às condições para cuidar de seus filhos, no reverso vemos como nossa elite precisa de uma política que lhe imponha o dever do cuidado de seus próprios filhos – pois apenas assim ela poderia transmitir a esses justamente a práxis do cuidado a qual, ao obrigar o reconhecimento e responsabilidade perante uma alteridade, fundamenta uma coletividade humana para além das determinantes bárbaras e meramente mercantis. Sem tal dupla reviravolta na criação de nossos filhos continuaremos a viver eternamente nossas maternidades brasileiras ou como as tragédias das Mirtes ou como as farsas das Saris.
Egon Schiele, em 1915, retratou no quadro Mãe com duas crianças II uma mulher que tem em seu colo duas crianças: uma primeira em pé e bem desperta e uma outra que, deitada e de olhos fechados, não sabemos se está morta ou dormindo. Na composição do artista vemos claramente retratado o encontro em um único colo de uma criança ostentada e paramentada como um Pierrot (essa figura ambígua do palhaço triste, tão propícia a representar a burguesia) e um menino inerte e pobremente vestido.
Em sua nova madona Schiele parece desenhar o encontro dessas duas maternidades tão distintas e complementares que reconhecemos gestando o mal-estar social de nossa brasilidade. Que o desenho desse outro colo possa inspirar a nós um outro instante histórico: aquele do espaço compartilhado por diferentes em uma lógica coletiva do cuidado. E acolhidos juntos nesse outro projeto/colo de país, nossos filhos, pobres e ricos, poderiam então deixar de cair no vazio real e moral que até hoje gestamos no vão entre o dever à servidão da babá e o direito à preguiça da patroa.
Alessandra Caneppele éautora de Mães enlouquecem: Medeia, Frankenstein e a Revolução.