O Homo Pekinensis e O Mundo: nas voltas que o tempo dá
.Por Francisco Foot Hardman.
A única certeza: ainda estou aqui. E aqui vou ficar por um bom tempo. Quais sinais de duração além do relógio, do calendário?
Do Ocidente que ainda se arroga protagonista em meio a curvas infindáveis de coronavírus, dos mortos convertidos em estatística, dos especialistas de araque que se revezam entre obviedades, mentiras e exibicionismos? De filósofos que continuam a arrotar filosofias vãs? De economistas que continuam a esgrimir gráficos inócuos? Das rodas on-line de conversas vazias? De governantes que já não disfarçam seu absoluto desgoverno? Entristece sobretudo ver o mundo ruir em meio a tanto tumulto e arrogância.
Mas não há esquecer. Nesse Primeiro de Maio vou de metrô até a estação da Biblioteca Nacional da China e tento interagir com um sol forte de primavera, na casa dos 32 graus. Entro no parque Zizhuyuan (do Bambu Roxo). Quantos parques e jardins públicos reabertos em Pequim! O Zizhuyuan revela particular beleza, com um lago imenso repleto de ilhazinhas de nomes harmônicos, como a do Lótus Azul. E vêm famílias, todas as gerações reunidas, e vêm casais, e vêm estudantes e trabalhadores, entre piqueniques nas sombras de bosques de chorões e árvores floridas ou verdes só-folhas. E penso na continuidade dos parques. E penso nas voltas que o tempo dá.
Em dezembro, numa visita à cidade de Qufu, província de Shandong, Leste da China, terra natal de Confúcio, eu e meu colega José Medeiros, cientista político residente há 12 anos aqui, professor da Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, Hangzhou, fomos surpreendidos, entre tantas belas surpresas que este país reserva ao visitante disponível, por cena de rua que não era turística nem celebrativa, apenas cotidiana e talvez milenar. Uma mulher moradora do bairro em que estávamos girava um pilão de ferro antiquíssimo, de uso comunitário, para moer grãos. O pilão ficava na rua. A vida rural, nesse quadro, mantinha seus elos, formas e ritmos. A cidade de Qufu cresce, e muito, como todas as cidades na China. Mas o uso do velho pilão mantinha-se intacto ali. Para quem conheceu esse clássico da moderna sociologia chinesa, a obra Xiangtu Zhongguo (China da terra), do antropólogo social Fei Xiaotong (Xangai, 1947), que foi traduzida em inglês como From the Soil: the foundations of Chinese Society (1992), isso não deveria propriamente surpreender. Essa permanência de traços rurais arraigados, em plena etapa urbano-industrial e tecnológica avançada da civilização chinesa, é uma constatação que se pode ter a cada dia, aqui, nos mais diferentes lugares.
Urbanoide inveterado, as paisagens rurais e silvestres me fascinam em seu melancólico sinal de próxima desaparição. De lugares os mais imprevistos, a roda do pilão do tempo se refaz. Assim, foi com muita alegria que recebi carta da leitora Paula Santos, bibliotecária municipal na cidade de Beja, Alentejo, Portugal. Ela buscava, como ciosa bibliófila que mostra ser, a fonte da citação daqueles versos atribuídos a Sêneca, numa das crônicas anteriores: “somos ondas do mesmo mar / folhas da mesma árvore / flores do mesmo jardim”. O assunto tinha viralizado na internet e eu me apoiei, entre outros artigos, numa matéria do jornalista Pepe Escobar saída no Asia Times e reproduzida no site 247: “Somos todos estoicos agora” (20/03/20). Ao buscar novas referências para responder à gentil Paula Santos, vejo que houve um equívoco generalizado, internacional, em que muita gente incorreu, inclusive a comitiva enviada pela empresa chinesa Xiaomi, que preparou faixas e cartazes com a frase, como gesto de fraternidade com o povo italiano, ao desembarcar em Milão trazendo doação de toneladas de equipamentos de combate à pandemia. E muitos italianos também entraram nessa falsa atribuição, já que, segundo Sofia Lincos, num artigo em queryonline.it, em 12/03/20, tudo começou numa placa existente em um parque público de Verona, onde, abaixo daqueles versos, está gravado que foram “inspirados em Sêneca”. Sem dúvida, seu sentido geral parece plenamente compatível com o estoicismo, apesar de autoria indefinida. Aos leitores, pois, minhas escusas. E à Paula Santos, nossos agradecimentos.
Como é possível quebrar, ao acaso e de modo incerto, as amarras do tempo, no território de uma mesma cidade? Em Pequim, será sempre possível traçar novas excursões a temporalidades extintas. Bastam curiosidade e pique. No início de janeiro, antes de qualquer confinamento, fui até o parque arqueológico Zhoukoudian, com o doutor em história do Brasil, Gao Ran. Queríamos acompanhar rastros e trajetórias do Homo Pekinensis. Distante cerca de 50 Km do centro de Pequim, a sudoeste, num subúrbio ainda pertencente à capital nacional e plenamente acessível de metrô, o museu e a enorme caverna no monte Longgu refazem o percurso de várias gerações de paleontólogos e arqueólogos que, desde a primeira descoberta de ossos desse hominídeo, em 1921, até hoje, continuam a fornecer pistas sobre como viviam esses nossos antepassados.
Eram gregários. Usavam o fogo. Será que pensavam, falavam? Inicialmente classificados como espécie distinta de primata, depois foram agrupados numa variante da espécie Homo erectus. Já caminhavam como bípedes. E conheciam formas elementares de cooperação. Distantes do mar, deviam, no entanto, saber-se folhas da mesma árvore, flores da mesma relva que circundava as encostas e o terreno calcário da futura aldeia de Zhoukoudian. Mesmo hoje, o visitante sente esse aspecto ainda rural e, entre 500 ou 300 mil anos atrás, intervalo em que os Homo Pekinensis terão vivido ali, a existência de bosques mais fechados compunha esse ambiente vital para as origens de nossa problemática espécie.
Num pequeno restaurante popular, na rua de terra que circunda a área cavernosa das escavações, encontramos ótima comida e melhor acolhimento. Dr. Gao me lembrava, entre almoço e caminhada, dos trabalhos realizados ali pelo teólogo francês Teilhard de Chardin, jesuíta dissidente, paleontólogo, que, indisposto com o Vaticano, foi mandado para a cidade portuária de Tianjin, no início dos anos 1920 e, logo depois, já em Pequim, começou suas pesquisas em Zhoukoudian. Banido da Igreja, mas depois reabilitado e considerado inspirador da Teologia da Libertação, é na futura capital da República Popular da China que escreve sua obra-prima, O fenômeno humano (1940), que busca o que parecia e parece, até hoje, síntese impossível entre fé e razão, entre ciência e religião. A influência da busca científica de nossa ancestralidade no Homo Pekinensis é notória sobre sua visão temporal de longuíssima e relativíssima duração daquilo que podemos admitir (e desejar) como “condição humana”.
Será que Chardin poderia vir a ser lembrado quando Pequim e Vaticano buscam, nesses últimos tempos, uma reaproximação, desejada por ambos os Estados, já que o único país de toda a Europa a não manter ainda relações diplomáticas com a China é justamente a Santa Sé? Cooperação solidária é tudo que o mundo, a Oriente e a Ocidente, necessita, num cenário pós-pandemia. Para além de fundamentalismos econômicos, religiosos, políticos, ideológicos, importa muito mais pensar nas formas e métodos da vida comum entre povos de uma espécie às vezes tão cindida de si própria e, mais que tudo, dos ambientes naturais de onde nasceu e dos quais, queira ou não, ainda depende radicalmente se desejar prolongar sua aventura nesse planeta.
Mas de que mundo ou mundos podemos esperar algo de bom para a vida comum planetária? Se fomos até Zhoukoudian buscar alguns sinais, parece proveitosa essa direção sudoeste. Pelo menos para quem, como eu, que vem descendo do noroeste, sempre de metrô, viaja uns 20 km e chega até outro parque temático bizarro e bem mais novo, hoje em dia um tanto escasso de público: O Mundo. O Mundo cabe em 47 hectares?
Pois é essa exatamente a ilusão que seus criadores quiseram produzir, quando o inauguraram em 1993, como parque de diversões que reúne réplicas de monumentos os mais famosos de todo o planeta. Lá, noivos paramentados podem se deixar fotografar ao lado das Grandes Pirâmides do Egito, ou numa das colossais construções de Ramsés II, montados num camelo de verdade, se quiserem, ou ao lado da torre de Pisa ou Eiffel. Por que não diante do Arco do Triunfo? Ou à frente do Taj Mahal? Até junto às torres Gêmeas nova-iorquinas se pode posar, o que depois de 2001 passou a ser, no mínimo, incomodante. A melhor representação artística desse estranho lugar continua a ser o magistral filme de ficção dirigido por Jia Zhangke, O Mundo (2004), onde essa aglutinação de espaços-tempos, em sucessão assumida de simulacros, se contrapõe à vida real dos trabalhadores do parque, de dançarinas a jardineiros, de bilheteiras a condutores e varredores.
Mas, com efeito, o que talvez mais ressalta desse passeio aos mundos do parque O Mundo seja o desejo imperativo que esse espaço de divertimentos desencadeia. Precisamos nos reunir à ampla humanidade que foi deixada fora das ilusões do progresso e dos espaços monumentais que a espécie tem erguido para cultuar deuses e soberanos, defender-se de invasores, celebrar riquezas acumuladas e arquiteturas pretensamente imortais. Os “barrados no baile” de ontem e de hoje: e se déssemos a eles, aqui e agora, voz e visibilidade, passe livre, comida e água? E, antes de tudo, casa?
E se pudéssemos cantar como as duas dançarinas amigas, no filme O Mundo, a russa Anna e a chinesa Zhao, em línguas agora permutáveis, aquela canção romântica, Ulan Bator Night[I] lembrando que a Mongólia está logo ali, longe-perto, esperando que à noite reencontremos um amor perdido, uma irmandade separada, uma alegria de viver que os ventos do deserto podem, com alguma sorte, nos reensinar? Haverá tempo e vontade de reaprender o que essa música apenas promete? (Publicado originalmente no Jornal da Unicamp)
[I] Ver o excelente livro de Cecília Mello, The Cinema of Jia Zhangke: realism and memory in Chinese film, Londres: Bloomsbury, 2019, pp. 216-17. Agradeço à autora pela gentil cessão de fotos de sua autoria sobre o parque O Mundo para esta crônica.