COVID-19: Um novo velho conhecido dos indígenas
.Por Artionka Capiberibe.
Parece estranho dizer que uma doença que mal começa a ser descoberta seja familiar de longa data de algumas das populações que vivem nesse planeta. No entanto, esse é o caso em relação à experiência que começa a ser vivida pelos povos indígenas com a COVID-19. Assim se passa porque vírus e bactérias são aliados, há séculos, da ganância da exploração econômica, agindo junto com esta na mortandade das populações indígenas.
Coqueluche, varíola, catapora, sarampo, malária, peste bubônica, tifo, difteria, conjuntivite e gripe são doenças cujos agentes patológicos exterminaram ou reduziram substancialmente povos que não possuíam barreira imunológica para os males trazidos com a suposta civilização. Os relatos sobre isso assemelham-se ao que nos apresenta o professor Roque Laraia e se sucedem ao longo do tempo. Mudam os microrganismos, mas os massacres permanecem.
No cenário do novo coronavírus, logo que a orientação de quarentena dada pela OMS se tornou palpável aqui, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) adiou a realização do Acampamento Terra Livre (ATL) de 2020, principal mobilização política pan-indígena realizada no país, que costuma reunir cerca de 4 mil indígenas provenientes de todas as regiões. Para que se tenha dimensão do significado desse ato, o ATL acontece em Brasília ininterruptamente há quinze anos, sempre no mês de abril, que é chamado de Abril Indígena, ressignificando o folclórico dia do Índio. Sua luta central é em favor do direito à terra, mas também se pressiona e exige os serviços que, por lei, o Estado deve às populações indígenas, incluindo nesse rol a prestação de atendimento à saúde. Sendo o Abril Indígena um momento crucial de visibilidade dos problemas e violências enfrentadas pelas populações indígenas, seu adiamento equivale a adiar as Olimpíadas Mundiais. Por esse motivo, recentemente, a APIB decidiu manter o ATL em abril, mas realizá-lo em plataformas virtuais: redes sociais, imprensa e mídias digitais serão o chão onde as barracas do acampamento de 2020 serão montadas.
Em relação ao tema específico da COVID-19, uma das ações da APIB para enfrentar a pandemia foi reivindicar que o governo federal implementasse imediatamente um plano de prevenção e atendimento aos casos de coronavírus entre populações indígenas, garantindo, entre outras coisas: a proteção de seus territórios (independentemente da fase de regularização em que se encontrem), a atenção às terras onde vivem povos em isolamento voluntário, conhecidos como isolados, e a suspensão de despejos em terras que foram retomadas pelas próprias populações indígenas, cansadas da lerdeza da ação do Estado.
Esse documento também pede a coibição de invasores nas terras indígenas, como grileiros, madeireiros, garimpeiros, posseiros e outros; e a garantia do aprimoramento do subsistema de saúde indígena, com medidas de prevenção para evitar riscos de contaminação do coronavírus em terras indígenas próximas a centros urbanos e/ou no momento em que as pessoas se deslocam para as cidades em busca de assistência médico-hospitalar.
Dentre as reivindicações da APIB, há uma que gostaria de destacar, a que pede a revogação imediata da Portaria no.419/PRES, de 17 de março de 2020, editada pela Funai com o objetivo de estabelecer medidas temporárias de prevenção à COVID-19. Na portaria, havia um artigo, o 4º, que permitia às Coordenações Regionais (CR) da Funai autorizar o contato com “comunidades indígenas isoladas”, ressalvando que isso se daria quando houvesse necessidade de atividades consideradas essenciais à sobrevivência desses grupos.
O que se apresenta como um zelo é, em realidade, uma armadilha, pois a Portaria daria poderes a uma parte da estrutura do órgão que não tem nem atribuição nem competência para agir em relação aos povos em isolamento voluntário, sendo essa uma função exclusiva da Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), em articulação com as Frentes de Proteção Etnoambiental locais. Com a pressão da APIB, reforçada por uma recomendação do Ministério Público (da 6ª CCR), a Funai revogou o artigo.
Esse artigo 4º da Portaria, além de ser um flagrante desrespeito às legislações de proteção de direitos indígenas, vai de encontro aos ensinamentos da história, que mostram como o contato com invasores (estes sim imunes às doenças e às ideologias de dominação que carregam) pode disparar a aniquilação de populações indígenas inteiras.
Em sua nota, a APIB menciona que essa orientação da Funai pode estar vinculada a “interesses não explicitados”, acrescentando que teria denunciado tais interesses em outras ocasiões. Encontramos aqui outra velha conhecida das populações indígenas, as missões religiosas. Em janeiro deste ano, a APIB repudiou a indicação de um pastor da organização proselitista Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) para chefiar a CGIIRC. A despeito das reações em contrário de diversas organizações apoiadoras dos direitos indígenas, o missionário foi empossado e ocupa o cargo responsável por tomar conta dos povos considerados a mina de ouro das missões evangélicas fundamentalistas: os povos em isolamento voluntário.
Outro fato que chama atenção pela coincidência com o proposto na Portaria 419 e que foi denunciado pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (UNIVAJA) foi a tentativa feita por um missionário da organização Frontier International de entrar na Terra Indígena Vale do Javari, uma das que concentra maior número de povos não contatados.
Romper o isolamento voluntário dos outros, quando o que rege hoje para a saúde mundial é todo mundo se colocar em isolamento social. Como classificar essa atitude? Será que agora que temos de ficar confinados, para salvar a pele uns dos outros, o sentido do isolamento voluntário das pequenas populações indígenas que vivem na floresta Amazônica pode fazer sentido para além do âmbito dos especialistas no tema?
Mas o contexto indígena no Brasil é complexo. Se num extremo estão os povos em isolamento voluntário, no outro, estão aqueles que vivem em centros urbanos e, no meio disso, os que vivem um trânsito, maior ou menor, entre aldeias e cidades. O que reúne essa complexidade é certamente a enorme vulnerabilidade em que todos se encontram.
Hoje, 10/04/2020, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI-MS) divulga o número de 6 casos e 1 óbito por COVID-19 entre indígenas. O óbito é o de um rapaz Yanomami de apenas 15 anos. Além da tristeza que causa, as consequências dessa perda ainda serão sentidas. Por fim, é relevante ressaltar o fato de que os dados da SESAI não contabilizam os indígenas que vivem em centros urbanos a quem o sistema de saúde indígena tampouco cobre. É desses indígenas não aldeados que veio a primeira morte causada pelo novo coronavírus, a de uma Senhora de 87 anos da etnia Borari, ocorrida no município paraense de Santarém.
Subnotificados, com assistência precária, com o risco real de o contágio se espalhar velozmente dentro das comunidades, sujeitos a invasões, os indígenas “isolados ou cadastrados” – oposição polar que, em texto anterior escrito junto com Oiara Bonilla, identificamos como expressão da vulnerabilidade indígena face às políticas de desenvolvimento do Estado brasileiro – enfrentarão novamente a mortandade de uma doença, mas, dessa vez, a história não os colocou sozinhos na tragédia.
Artionka Capiberibe é professora do Departamento de Antropologia e Diretora do Centro de Pesquisa em Etnologia Indígena (CPEI) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Este texto é parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).