Pelotas e a apropriação utilitária da ciência no capitalismo periférico
.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.
Nos últimos dias a Universidade Federal de Pelotas (universidade pública), no interior do Rio Grande do Sul, alcançou reconhecimento internacional por seus próprios méritos, em face do desenvolvimento de uma dos mais promissores e completos estudos epidemiológicos sobre a disseminação do vírus SARS-COV-2, responsável pela doença COVID-19 e todo o seu ciclo de evolução.
Os primeiros dados indicam com clareza que o “distanciamento social” adotado de forma preventiva no início do mês de março foi responsável por salvar vidas e reduzir o impacto da pandemia nos sistemas de saúde. Mais do que isto, os resultados preliminares da pesquisa indicaram a disseminação comunitária do vírus e um número de infectados superior a 4 vezes ao notificado nos sistemas oficiais, índice este que pode ser até 15 vezes superior, conforme matérias divulgadas na imprensa.
Além disto, a pesquisa também indica que disseminação está em fase inicial de contágio na região e os riscos de abandono/flexibilização nas estratégias de controle podem resultar na perda das vantagens obtidas com o distanciamento social e no aumento descontrolado dos problemas ocasionados pela doença.
Apesar destes resultados, contrariando todos os prognósticos de riscos, a Prefeitura de Pelotas optou por iniciar processo de reabertura das atividades comerciais, aderindo à pressão dos sindicatos empresariais interessados em aproveitar a chegada da data comercial “Dia das Mães” para compensar prejuízos derivados do distanciamento social. Esta medida problemática foi precedida, ainda, de manifestações públicas do setor empresarial por meio de carreatas que podem ter contribuído para a disseminação comunitária do vírus, movimento este que, apesar de representar aglomeração de pessoas (lembrar que o vírus da COVID-19 também é propagado por materiais como o metal dos veículos, alumínio e papel), contou com a complacência omissiva da Prefeitura, da polícia e do Ministério Público.
A imensa contradição expressa no conflito entre as recomendações científicas, as decisões políticas e a pressão do meio empresarial são apenas parte de uma narrativa trágica da pandemia que o mundo vem enfrentando em 2020. Pelotas, embora seja uma cidade periférica, não está fora de um sistema global cercado de contradições. E mesmo que seja contemplada por um centro científico de referência, ainda se mostra sujeita à pressões oportunistas de setores políticos que sequer demonstraram reais preocupações com a saúde pública.
Ao longo deste pouco mais de 1 mês e meio de crise pandêmica, foram poucos os empresários do oligopólio comercial local que adotaram medidas voltadas ao combate da doença, seja com a manutenção de contratos de trabalho, seja com a oferta de recursos materiais para o enfrentamento da pandemia.
O capitalismo periférico local, com exceções, sempre esteve mais preocupado com a ruptura das estruturas de controle do que o apoio aos segmentos mais vulneráveis da população. É possível “contar nos dedos” os nomes das empresas que apoiaram as iniciativas públicas de proteção da saúde.
De fato, a situação observada na pandemia não é um fato isolado na história do capitalismo, especialmente dentro de uma cidade que ainda mantém estruturas de diferenciação social moldadas durante a escravidão que perdurou até o final do século XIX.
A colocação de vidas em risco, seja de consumidores ou funcionários é parte da compreensão de que pessoas são descartáveis diante do potencial lucrativo de um evento que tradicionalmente representa a segundo maior pico de comércio do país. Ao contrário da retórica do atual ocupante da cadeira presidencial, não são empregos que estão em jogo, mas a renda de um grupo seleto dos quais muitos devem acompanhar as vendas no conforto do seu lar, executando o distanciamento social, proteção esta que pretendem negar aos seus funcionários e aos consumidores.
O grave problema desta irresponsabilidade é o efeito cascata que se avizinha: lojas precisam de funcionários e clientes, estes precisam de transporte, as mesmas famílias precisam de locais onde deixar seus filhos, ou seja, escolas e creches, dentre outras ações que reforçam a corrente. Poderá a Prefeitura enfrentar o problema do transporte lotado quando as empresas de transporte seguem reclamando da falta de usuários provocada pela pandemia? Poderá a Prefeitura fiscalizar um sistema de transporte com veículos mal asseados, lotados e com horários reduzidos? Nem falo aqui das lojas que serão abertas com critérios que estarão sujeitos à responsabilidade das pessoas que pressionaram para abrir atividades potencialmente geradoras de circulação no meio de uma pandemia. Falta uma compreensão por parte da administração local sobre uma palavra que fundamental às relações humanas, especialmente as contemporâneas: interdependência.
A sociedade atual, mesmo com a sua complexidade, é extremamente interdependente. As ações ou fatos adotadas em uma parte do planeta podem afetar outra ponta a quilômetros de distância. Foi assim quando europeus se negaram a proteger com rigor as medidas de distanciamento social diante da COVID-19 e os resultados foram observados na disseminação exponencial do vírus em todos os cantos.
Na época os governos europeus locais não suportaram a pressão política de eleitores e financiadores de campanha e levantaram barreiras sanitárias. Os resultados hoje são contabilizados aos milhares de vítimas fatais, isto sem considerar os milhões de infectados pelo vírus. Apenas “máscaras” e “luvas” não são a solução diante da circulação de pessoas e veículos por uma cidade em movimento.
Como argumento, alguns afirmam que a Coreia do Sul enfrentou a COVID-19 em situação de seminormalidade. Isto não é verdade. Além do distanciamento social que ainda vigora, o país implementou pesada política de controle de circulação da população, com medição periódica da temperatura de passageiros nos veículos de transporte, geolocalização de grupos, distribuição de duas máscaras de proteção semanalmente para a população, dentre outras. Todos os países que tentaram manter atividades regulares diante do avanço de um vírus mortal foram obrigados a voltar atrás, como Suécia, Holanda e Estados Unidos, todos contabilizando elevado índice de mortalidade.
Tradicionalmente o capitalismo tenta utilizar a ciência como suporte para o aumento da lucratividade. Assim foi o sistema jus-in-time, a industrialização da guerra, entre outras estratégias que elevaram o potencial de acumulação. Mas quando a ciência nega os interesses de acumulação ela é sumariamente negada.
O resultado deste uso utilitarista dos dados científicos pode ser observado em fenômenos como a crise ecológica, o aquecimento global e o crescimento de epidemias e pandemias em escala mundial. Este tipo de relação já se demonstrou incompatível com a sobrevivência da civilização. Fica a pergunta: até quando vidas serão substituídas por ganhos monetários?