O morcego e nós
.Por Francisco Foot Hardman.
Uma coisa é certa. O colapso socioeconômico e sanitário mundial produzido pela pandemia do coronavírus vai abrir um novo período na história. Profetas do neoliberalismo terão que enfiar a viola no saco. Muitos já enfiaram. Outros serão convidados a tal depois de continuar a rezar em suas cartilhas ridículas.
Se o mundo, para quem o podia ver sem as ilusões que corporações e governos tentavam fazer passar, já era a diáspora sem rumo de 70 milhões de refugiados internacionais e deslocados internos de guerras, colapsos ambientais, perseguições étnicas, religiosas e políticas, é muito provável que, a julgar pelas previsões de órgãos insuspeitos como ONU, FMI e Banco Central Europeu, essa cifra atinja centenas de milhões de pessoas em futuro próximo. A recessão que estava presente no horizonte da economia global deve se aprofundar em depressão equivalente ou maior daquelas vividas nos cenários da crise de 1929 ou do pós-II Guerra Mundial.
Como ficaremos? Se é verdade que a pandemia é efeito também da crise socioambiental planetária, do avanço da nossa espécie sobre florestas e ambientes silvestres, difícil prever o que poderá advir desse que foi o maior desarranjo recente nas interações biológicas dos seres humanos com outros animais.
Haverá tempo e lugar para uma nova consciência? Difícil prever. O fato é que não há mais escusa para o consumismo desenfreado baseado em pecuária extensiva e predatória de ecossistemas essenciais como o da Floresta Amazônica. Nem na expansão desmedida da soja que destrói biomas inteiros como o Cerrado brasileiro. Nem nas criações em larga escala que atraem outros mamíferos. Nem na caça que extingue várias espécies. Nem nas minerações que destroem montanhas, rios e florestas. Nem no petróleo, mal maior do século XX, que traz seu rastro aniquilador de modo trágico no século XXI. Nem na civilização do plástico assassino de tantos rios, lagos e mares. Não dá mais para ignorar o extermínio continuado de povos originários e a predação de seus últimos territórios. Não dá mais para boicotar nem adiar políticas de saúde pública máxima, universal e comunitária.
Não dá mais para continuar a crer na espiral da ciranda financeira feita só de especulação e capitais fictícios, sem nenhum lastro produtivo ou ambiental. Não dá mais para fingir-se de tontos e silenciar diante da mercadoria-espetáculo que se impõe sobre a vida humana planetária mediante a produção e reprodução da mentira, de todos os sectarismos, da hipertrofia narcísica dos egos, da “traição da democracia pelas elites” (Christopher Lasch). Diante da tecnologia digital apropriada de modo faccioso ou até fascista por bandos bem aparelhados a serviço da dominação de massas de modo autoritário ou até totalitário. Do eu-mínimo (de novo, Lasch) convertido em bolha máxima da alienação.
Não dá mais para abandonar o planeta à incúria de seus assassinos. Não dá mais para abandonar os pobres e miseráveis à sorte dos azares que eles jamais criaram. É preciso Estados e órgãos multilaterais fortalecidos para defender o primado da vida humana e dos biomas terrestres sobre todas as outras coisas e interesses. É preciso voltar a entender e praticar, em toda a sua extensão e consequência, os conceitos contidos nos vocábulos cooperação e redistribuição.
Haverá tempo, haverá lugar? Não sabemos. Que haja, por ora, vontades disponíveis a se organizar para assumir esses desafios. E vejo que há muitas. O problema maior parece ser ainda sua dispersão. Mas, quem sabe, o confinamento involuntário não produza a visão de dentro que tudo pode religar? E o que venha de dentro possa iluminar o que está fora? E o que está fora possa se reunir ao que está dentro?
Meus alunos seguem estudando com afinco, em 12 cidades e províncias diferentes dessa imensa China. Tudo à distância. Tudo perto, porém, quando a alma quer e os corpos em movimento respondem. A primavera é plena. Nosso campus aqui em Pequim permanece vazio e fechado. Abrirá depois das grandes celebrações do Primeiro de Maio e do 4 de Maio (comemoração de uma jornada histórica de lutas democráticas ocorrida em 1919, que foi assumida pela Universidade de Pequim como sua data oficial anual)? Esperamos – professores, funcionários e alunos – que sim.
Leituras fluem. Pensamentos vêm e vão. Alunos de idiomas da Universidade Normal de Pequim, nas áreas de português, espanhol e alemão, produziram pequenos vídeos de mensagens solidárias, como parte de suas tarefas escolares. Isso se repete por todo lado. Meus alunos da BEIDA leem tudo que proponho, e seus retornos chegam a ser, muitas vezes, surpreendentes e tocantes. Rara vez a solidão docente, agora radical, tem sido tão compensada. Entre tantas autoras e autores brasileiros e lusófonos, selecionei alguns poemas do enorme artista paraibano que foi Augusto dos Anjos. Pois a classe respondeu na lata, e as análises e comentários, que deles recebo, me conduzem naturalmente a lhes atribuir conceitos máximos. E a poesia, nesse círculo voador, pode dar sempre o que pensar.
Será que haverá um morcego portador dessa consciência humana que parece adormecida, recolhida à rede de um quarto depois da meia-noite? Que temos a mais do morcego, afora a pretensão de senhores de uma natureza que já morre, que já matamos? Será possível que ainda ninguém percebeu? Será que podemos apostar na virada de lado, de lógica, de valores? “A Consciência Humana é este morcego! // Por mais que a gente faça, à noite, ele entra // Imperceptivelmente em nosso quarto!” (Augusto dos Anjos, “O Morcego”. In: Eu, 1912). (Publicado originalmente no Jornal da Unicamp)