Por uma outra globalização: Krenak e Milton Santos pedem passagem
. Por Francisco Foot Hardman.
De Pequim
Pois é: o mundo gira, e rápido. Quando a epidemia virou realidade tangível nacionalmente aqui na China, em seu ritmo exponencial e assustador, isso faz dois meses, parecia que estávamos condenados a não se fazer entender fora deste imenso país. Para visitantes estrangeiros como eu, era uma completa sensação de exílio.
Mas, agora, os caminhos se revertem. Meus cumprimentos à reitoria da Unicamp e à sua comunidade que souberam responder e decidir com a urgência e coragem que a gravidade dos fatos requer. E minha solidariedade, também, aos colegas docentes, funcionários e estudantes, em especial aos do IEL, neste momento que é de perplexidade e angústia. Minha certeza: vai passar. Mas isso só reforça a necessidade de cuidar bem de si para poder cuidar bem dos outros.
Na China comemoramos, pela primeira vez desde dezembro, a ocorrência de zero novo caso na cidade de Wuhan e na província de Hubei, epicentro da crise. Todos os novos casos registrados no país, 34 ontem, 21 dos quais aqui em Pequim, advêm de viajantes chegados do exterior, em particular da Europa. Que assumiu o lugar de novo epicentro, Itália tragicamente à frente, desde que a OMS reconheceu oficialmente a situação de pandemia.
É horrível mesmo não poder transitar pelos lugares que mais desejamos. Ou que necessitamos, por razões de trabalho, estudo ou laços afetivos. Nossas cidades, devoradas pelo vírus da velocidade e da digitalização generalizada, parecem dispor da tecla de um só comando: acelerar, acelerar, acelerar; consumir, consumir, consumir. E quando o perigo de uma guerra se aproxima, o botão stop produz dúvida, raiva, medo.
É necessário reaprender, com os povos tradicionais e originários, o curso dos caminhos e a esperança que se renova na sequência das estações. Mas o mundo está realmente em colapso socioambiental, por todos os ângulos e paisagens que se queira ver, e a espera pode significar somente um sonho bom, “um sonho feliz de cidade” antes do fim. Tenho percebido que a palavra distopia, até recentemente só de uso especializado em algumas esferas filosóficas e científicas, vai tomando lugar no discurso cotidiano. Por todos os lados.
Dialeticamente, utopia pode significar alento novo nas lutas por um mundo habitável por todos os humanos que forem capazes de incorporar os quase-humanos na direção de um conceito de humanidade efetivamente ainda por constituir e por se reconhecer em si e para si como tal. Adapto aqui livremente algumas considerações de Ailton Krenak em seu pequeno grande livro Ideias para adiar o fim do mundo, que saiu no ano passado e li com meus alunos na Universidade de Pequim, propondo que fosse justamente uma reflexão de transição entre o final de 2019 e o começo de 2020. Mal sabíamos…
E, agora, em ensino à distância há seis semanas, entramos na leitura de Milton Santos, o grande intelectual-negro-baiano-brasileiro-cidadão-do-mundo que, um ano antes de nos deixar, exatamente na virada do século e milênio, disse praticamente tudo que se poderia dizer sobre os impasses que nos ocupam nessas duas décadas desventuradas. Premonitoriamente. Em outro registro, em especial o do geógrafo urbano que jamais perdeu a referência em torno da centralidade da noção de território, retoma-se o fio dessa utopia de uma humanidade ainda por se fazer digna do nome. Refiro-me à sua derradeira obra, Por uma outra globalização (2000).
Porque, diante da hipertrofia do dinheiro fictício e desterritorializado, é preciso voltar a saber olhar para a terra de onde saímos e de onde partimos, e para onde, se alguma sorte tivermos, regressaremos. Entre as mágicas de espaços estranhos, há aquela singular dos veículos, dos meios de transporte, um dos capítulos que sempre me fascinaram nas antigas lições de geografia. Não, hoje não falarei dos trens de alta velocidade, pois merecem capítulo à parte. Ficaremos apenas com triciclos.
Graças à arte especial e delicada da cartunista chinesa Cao Siyu, podemos ter uma amostra viva desses carros que combinam tão bem o que de mais antigo e mais moderno a Pequim cosmopolita revela[1]. Nenhuma circulação de bens, correspondência expressa, ambulantes, comida delivery, garrafões de água, coletores de lixo reciclável, limpadores de rua, enfim, poderia se fazer na abrangência e rapidez com que ocorre aqui e na maioria das cidades chinesas sem a participação indispensável desses triciclos, com suas e seus azes do volante insubstituíveis. Embora já tenham voltado a circular moderadamente, sem entrar nos condomínios e vilas, sinto enorme falta deles. Agora em sua quase totalidade elétricos, com um sistema de recarga imbatível, vêm muitas vezes silenciosos, afora seus sistemas de alarme e aviso de manobras que infernizam os ouvidos de quem estiver próximo.
Procuro em vão algum triciclo. Por acaso o daquela mulher vendedora de castanhas, que eu sonhava em rever na primavera. Com alguma sorte, o da mulher da vendinha da vila: mas agora mesmo ela cruzou comigo a pé, e acenou em sorriso mal escondido pela máscara, Nî hâo!, este “olá” universal da língua chinesa, de tantas traduções possíveis, mas a que eu quero ouvir não é aceitável nem pelo mais generoso linguista da interculturalidade.
Nessa busca dos triciclos que são o pulmão sem vírus da China, todos sabem, aqui e alhures, que quando se restabelecerem os fluxos da vida, eles voltarão a dominar a paisagem urbana que nos cerca. E, quem sabe, para além das mercadorias expressas, eles pudessem, agora, transportar algo mais. O sonho de uma outra globalização. Mas isso assim soa definitivamente abstrato. Prefiro então vê-los passar em sua balada apenas silenciosa e sincronizada. Levando recados e pedidos. As utopias reencontradas do indígena Ailton Krenak e do negro Milton Santos, a linha Brasil-China-Mundo, a melhor rota Ocidente-Oriente que pode nos reunir e afastar para sempre os demônios do vírus da deseducação – estes inomináveis seres que infestaram o planalto central de nossa República – a qual merece realizar os melhores sonhos que já sonhou. Os sonhos, entre tantos, de Chico Mendes e Marielle Franco. Porque, acreditem ou não, triciclos também podem voar, na imensidão dos espaços e nas promessas do tempo. (Publicado originalmente no Jornal da Unicamp)
[I]Agradeço à cartunista Cao Siyu, que gentilmente autorizou o uso da imagem reproduzida nesta crônica. Mais ilustrações dessa notável artista podem ser encontradas em aqui