.Por Bruno Baaklini.
Apresentação, do autor e do primeiro artigo
Toda estreia é uma sensação nova, que inclui o desafio de falar – conversar – com um público novo e ainda assim reforçar vínculos já existentes. Esse é o primeiro artigo abordando os temas do Grande Oriente Médio, com ênfase especial na libertação da Palestina e nos direitos inalienáveis e indissociáveis com o território e seu povo. Trata-se de texto de opinião, circulando com a temática central no pan-arabismo e na dramática situação em que se encontra a Cisjordânia, Gaza e os demais elementos centrais na construção de uma saída viável que contemple, no mínimo do mínimo, a mais de sete milhões de pessoas. Confesso que a tarefa não é simples e parece ultrapassar minhas possibilidades.
Antes de seguir peço licença para me apresentar. Não sou neófito nas atividades políticas (comecei no engajamento ainda criança, na chamada pré-adolescência na década de ’80 do século passado) e menos ainda no apoio à Causa Palestina. Por parte de pai tenho origem árabe, e como milhões de brasileiros e brasileiras, ascendência libanesa cristã (no meu caso, maronita) embora distante das raízes. Felizmente a formação no tema iniciou muito cedo, quando da Guerra Civil Libanesa (1975-1990), especialmente na segunda invasão de Israel ao Líbano (em 1982). Tive a sorte de aprender sobre a região através de meu falecido avô paterno, um entusiasta defensor da Frente Rejeicionista, do Bloco Árabe-Palestino-Muçulmano e Progressistas. Meu avô era um seguidor – à distância – das ideias do Sheikh Kamal Jumblatt. Curiosa situação, pois não venho de família drusa e sim maronita. Assim, através da escuta sobre as posições do líder histórico Movimento Nacional Libanês, me fiz pan-arabistas e pró-palestinas desde muito novo.
A politização em temas do Brasil e da América Latina veio mais forte, mas pela via da militância, o desenvolvimento político veio junto ao compromisso com a Causa Árabe e Palestina. No final desta década e no início dos anos ’90, participei ainda vivendo no Rio de Janeiro, do Comitê pela Libertação de Lamia Maruf Hassan. Desde então os vínculos – mais emotivos que políticos, mais de memória que orgânicos – não foram mais interrompidos. A partir de 2013, já doutor em ciência política e dedicado nas tarefas de docente de relações internacionais, ao que era vontade militante se somou com a missão do ofício. Um dos princípios do Direito Internacional, o da autodeterminação dos povos e seus territórios, se tornou um princípio de vida. Logo, não há como correr dos vínculos com o Oriente Médio, no apoio incondicional à Causa Palestina e ao Confederalismo Democrático no Curdistão, assim como no combate aos imperialismos e traições que assolam os países de nossos antepassados. Nos textos que seguem (neste e nos demais), me atenho na relação do pan-arabismo com a tentativa de incidir sobre a colônia e descendentes árabe-brasileiros assim como participar do esforço internacional em solidariedade ao povo palestino. Não é tarefa fácil e muito menos corriqueira.
Expondo os termos iniciais do debate: o combate ao antissemitismo e a defesa da Palestina
Por mais vínculos que tenhamos com o Grande Oriente Médio, o Arabismo e porque não, o Mundo Islâmico, a trajetória política e intelectual do apoio solidário é marcadamente outra. Somos solidários a uma Causa distante de sociedades que em geral compreendemos pouco. Citando a Edward Said, há que se temer o “orientalismo” mesmo quando esse existe na negação do mesmo. Ou seja, é tão nefasto ver a região como “exótica ou excêntrica”, como também o é ignorando as formações sociais concretas e a vida em sociedade que por lá se desenvolve, com todas as suas mazelas e conflitos de interesse. Assim, vejo como muito, muito importante conhecer com grau de profundidade as relações de poder no Mundo Árabe, os sistemas de governo, as estruturas de dominação, os papeis sociais e, dentro de tudo isso, a luta de classes (quando estas assim existem), a luta dos povos e a presença constante de Impérios Ocidentais (como os cruzados anglo-saxões e os cruzados russo-bizantinos).
Escrevemos a partir do “ocidente periférico”, é sempre bom lembrar. Digo isso porque a relação de alguém como eu, diante das comunidades judaicas, é sempre de alguma dubiedade. Tendo formação política “ocidental” (no pós-iluminismo socialista ainda na 1ª Internacional), e de base libertária, a perseguição às comunidades judaicas europeias em distintos períodos históricos é sempre uma constante. Logo, entendo que é necessária alguma garantia para as pessoas de descendência e fé judaicas. Neste sentido concordo com aquilo que foi declarado, de forma genérica pelo mais que respeitado historiador Ilan Pappé. Não é tolerável nenhuma forma de antissemitismo (nem o europeu, contra populações judaicas e tampouco anti-árabes) e sim, entendo que seria necessária uma espécie de território e santuário para a comunidade judaica. Sendo direto. O combate aos perseguidores do povo judeu não pode em hipótese alguma implicar em nenhum nível de tolerância contra a deportação, desterritorialização, ocupação militar e limpeza étnica na Palestina. Como é sabido, ainda na década de ’20 do século passado, a liderança árabe-palestina chegou a cogitar um Estado Binacional, algo solenemente ignorado por Ben Gurion e seus pares. O resultado desta vontade expressa, incluindo a aliança com o imperialismo inglês, depois com EUA e União Soviética, já em 1956 novamente com Inglaterra e França e na sequência o apoio incondicional dos Estados Unidos, todos sabemos no que resultou. Repetindo. Ser contra o antissemitismo não implica, jamais, em parecer aceitável os termos da fundação do Estado de Israel – a Nakba – e menos ainda tendo por base a limpeza étnica anterior e os tipos de ocupação sendo realizadas após 1948.
É importante reforçar o óbvio. No cumprimento do dever, venho de uma tradição onde não se “conversa” ou “dialoga” com o antissemitismo. Não foram poucas vezes em que fomos chamados às últimas consequências com essa laia autodenominada de nazifascista ou assemelhados. Lutar contra a excrescência não pode ser conivência com a desumanização do povo palestino. Tamanha necessidade histórica (a luta frontal contra a extrema direita) só ganha legitimidade se – no Oriente Médio – essas mesmas pessoas promoverem uma equiparação de direitos com o povo árabe-palestino. Resumindo: a luta contra o antissemitismo não tem “dono” e menos ainda a chancela de ser ou não antissemita pode pertencer aos apoiadores da Ocupação da Cisjordânia e do Cerco à Gaza. Ao mesmo tempo, é urgente não reproduzir o mito de “Israel bastião das ideias mais avançadas” no Oriente Médio, porque o custo e peso desta sociedade liberal capitalista é a dominação de milhões de árabes.
Em números aproximados, são sete milhões só dentro das fronteiras de Israel em 1948 (quase dois milhões de palestinos que Tel Aviv insiste em denominar “árabe-israelense”), Cisjordânia (três milhões) e Gaza (2 milhões). Logo, o que é possível pensar como sendo o “plano estratégico” de Israel para sete milhões de pessoas e mais os seis milhões de refugiados originários na Nakba? Aniquilar estes territórios? Colapsar as mínimas condições sanitárias? Condenar a fome e a inanição os habitantes de Gaza? Anexar – de fato – toda a Cisjordânia, passando por cima do direito internacional?
A posição é tão simples como dramática. Lutar contra o antissemitismo no mundo e defender a Causa da Libertação da Palestina. Não há meio termo como lembra John Mearshemier; célebre cientista político realista e co-autor junto a Stephen Walt do livro clássico “The Israel Lobby and US Foreign Policy, 2007. Ou o Apartheid é superado, ou então Israel troca paz por terra e água e restabelece condições concretas para 2 povos e 2 Estados. Isso implicaria, por exemplo, o total recuo dos colonos e assentamentos da Cisjordânia, a distribuição paritária de todos os recursos hídricos, o estabelecimento de um Porto em Gaza, sem bloqueio naval e um aeroporto na Cisjordânia, além das fronteiras abertas e sob controle palestino tanto com a Jordânia como com o Egito. Isso ou um Estado conjunto, pós-apartheid, tal como na África do Sul após 1994. Não para por aí. Israel tem de devolver Golã para a Síria e interromper os “ataques preventivos” de toda e qualquer natureza com o Líbano e a Síria. Esses itens seriam o mínimo do mínimo.
Sem negociar sobre o concreto, o debate do antissemitismo vira uma guerra de inteligência comunicacional e cibernética pelo controle da narrativa. E isso só interessa a quem não quer de fato combater a ascensão da extrema direita no Ocidente e menos ainda mover um centímetro a favor da solução da Questão e da Causa Palestina.
Linhas conclusivas: e o antissemitismo alegado na defesa da Palestina?
Encerro chamando atenção para um tema que vai orientar – literalmente – nosso debate nos próximos artigos. Antissemitismo é crime, profanação de tumbas e apostasia de qualquer natureza também. E, é um crime político atribuir que a defesa dos direitos do povo palestino é uma forma de antissemitismo. Ser antissemita também é ser anti-árabe, porque semitas somos tanto árabes como hebreus. Logo, ser anti-árabe (e porque não islamofóbico) é ser “orientalista” segundo Said e pró-ocidental e imperialista, além de colonizador cultural. Assim, na atualidade, nada mais anti-árabe do que o cinismo israelense e sua prática de ocupação militar e vigilância através da Shabak (Shin Bet, polícia política) contra toda a população árabe-palestina. Nos próximos meses ou semanas, seguimos com este debate, alinhando-o e entrando nos meandros mais difíceis. Voltaremos.
Bruno Baaklini (Bruno Lima Rocha no sobrenome materno, [email protected]), árabe-brasileiro de descendência libanesa é professor de ciência política e de relações internacionais.
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