.Por Cecília Figueiredo.
Quatorze dias após o juiz federal Paulo Cezar Duran ter acolhido pedido de retorno dos 37 médicos do Programa Mais Médicos para unidades básicas de saúde da capital paulista, o governo Jair Bolsonaro (PSL) entrou com um “pedido de reconsideração” e outro juiz federal, Leonardo Safi de Melo, derrubou a liminar na terça-feira (1º), deixando novamente sem atendimento mais de 280 mil pessoas nas periferias da cidade de São Paulo.
“Não há sequer um estudo de caso quanto ao impacto e efeitos como supostamente arguidos pela parte autora, que a não continuação do termo de cooperação impactaria em milhares de pessoas”, destaca trecho da sentença do juiz que anulou o ato do colega.
Para o advogado Patrick Mariano, o estudo de caso ao qual o juiz se refere está evidente na peça. “Refere-se a quantas pessoas cada médico atende. Essa fala dele não faz muito sentido, porque é evidente que nessas regiões de população economicamente mais vulnerável, muitas vezes significa retirar o único médico que atendia no local. Isso produz um impacto. Agora, de fato, quem tem os números é a Secretaria Municipal de Saúde e ele poderia pedir se quisesse”.
Mariano é um dos autores da ação civil pública ajuizada pela Central dos Movimentos Populares (CMP), pelo Movimento pelo Direito à Moradia (MDM) e pela Associação Cidadania e Saúde, em favor da prorrogação dos contratos com os médicos. Ele questiona a validade legal da derrubada da liminar.
Segundo ele, o pedido de “reconsideração” feito pela Advocacia Geral da União (AGU) numa mesma instância judiciária (no caso, a Justiça Federal em São Paulo) é um dispositivo inexistente no Direito.
“É completamente anômalo e, na minha resposta, eu sustentei que antes de uma decisão era preciso ouvir a Secretaria de Saúde, por estar no polo passivo, assim como a União. Também solicitei que não houvesse ‘reconsideração’, por não ter previsão legal. Mas o juiz decidiu sem ouvir a Secretaria de Saúde e não se manifestou a respeito desse pedido da AGU sem previsão legal”.
Diante disso, os autores da ação civil irão apelar da decisão. Segundo Mariano, que esteve nesta quarta-feira (2) com o secretário municipal de Saúde, Edson Aparecido, até o final da semana eles entrarão com pedido de efeito suspensivo da decisão no Tribunal Federal.
“Para que imediatamente sejam prorrogados os contratos do Edital 12 até que a União e a Secretaria Municipal de Saúde consigam colocar algo no lugar, mais ou menos a decisão que o primeiro juiz deu. Vamos pedir ao desembargador com urgência”.
Caso seja acolhida, a medida poderá garantir a continuidade do programa Mais Médicos até que a União apresente proposta substitutiva.
Secretaria afirma importância dos profissionais
A Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo esclareceu em nota que desde abril vem solicitando ao Ministério da Saúde “a prorrogação do acordo de cooperação” e que realizou “diversas reuniões para reafirmar junto ao órgão o interesse e a importância da continuidade destes profissionais”. A pasta informa ainda que os médicos eram pagos integralmente com recursos do município.
Em razão da maioria que atua no Programa Mais Médicos não possuir a inscrição no Conselho Regional de Medicina (CRM), a pasta disse ser inviável a contratação através de processo seletivo realizado pelas Organizações Sociais (OS) que atuam na capital.
Sobre a reposição das vagas ociosas, a secretaria afirma que “as coordenadorias adotarão medidas para assegurar a assistência à população nas 31 unidades de saúde onde atuavam os 33 médicos do programa e a pasta vai garantir o reagendamento de consultas e exames”.
Também esclarece que quatro dos 37 médicos solicitaram o desligamento junto ao Ministério da Saúde em dia 15 de setembro, data do primeiro encerramento das atividades.
Contudo, não informou prazos para essa reposição.
De volta à insegurança
Enquanto isso, pacientes que passam há três anos com os profissionais do Mais Médicos – desde que o convênio entre União e município foi firmado, em 2016 – voltaram à desesperança.
Luciene de Souza Santos, usuária da UBS Vila Santa Catarina, na região Sudeste da capital há dez anos, conversou com a reportagem em setembro e lamentou não poder mais se consultar com a médica Eline Ethel, cujo contrato oi encerrado em junho.
“É difícil encontrar uma médica assim, porque geralmente a maioria dos médicos quando você entra na sala, eles mal olham na sua cara”, afirmou Luciene ao falar dos problemas psicológicos que a médica de família a ajudou superar.
Choro, abraços e muita tristeza também acompanharam a despedida de André Menezes de Souza Machado, médico cearense de família e comunidade da UBS Jardim Clipper, zona Sul de São Paulo, onde cerca de 80 mil pessoas são atendidas.
Na comunidade atendida pela UBS em que André trabalhava, outro profissional do Mais Médicos em breve terá encerrado o contrato.
A interrupção dos atendimentos pode causar danos irreversíveis à saúde dos pacientes – já que muitos são pessoas acamadas que recebiam visita domiciliar, pessoas com quadro de hipertensão e diabetes, por exemplo.
André conta que no período da primeira suspensão do contrato, em 15 de setembro, alguns de seus pacientes morreram.
“Minha região é tão sensível, que ao retornar [pela liminar] o primeiro paciente que atendi estava tendo um infarto. O paciente estava infartando, aí tivemos que estabilizar e transferir para unidade de referência [emergência]”.
Bastante vinculado à área onde atuou, ele espera que a população não fique desassistida. Desde que chegou da Rússia, onde formou-se em medicina, entrou para o Programa Mais Médicos e sempre trabalhou na mesma região.
Eline Ethel, médica especialista em Saúde da Família e integrante da Rede de Médicas e Médicos Populares, avalia que faltam muitos elementos para que se encerre o Mais Médicos.
“[É preciso] Analisar com um pouco mais de cuidado no que diz respeito aos dados. Uma das coisas que o juiz [não considerou] é que são 280 mil pessoas sem atendimento desses médicos que saíram. Sabemos que são médicos que atendiam em unidades de saúde de territórios extremamente vulneráveis. E a reposição de médicos hoje é algo complexo. Essa decisão do juiz, na prática, não possibilitará o alívio das pessoas, que já estavam vinculadas a esses médicos. Profissionais competentes, especialistas em Saúde da Família e que já estavam vinculados há mais de três anos. Faltou análise sobre essas informações para decidir sobre o tema e a grande proporção que poderá ter a falta desses médicos nessas regiões”. (Do Saúde Popular)