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Após patente duvidosa, empresa aumenta de R$ 64 para R$ 986 o remédio para Hepatite C

Entre 2015 e 2018, o laboratório estadunidense Gilead forneceu 99,96% do sofosbuvir comercializado no país. O medicamento é usado com sucesso no tratamento da Hepatite C. No período, o preço médio cobrado variou de R$ 179,41 a R$ 639,29 por comprimido composto pelo princípio ativo.

A empresa teve uma receita de R$ 1,4 bilhão somente com as compras realizadas pelo Sistema Único de Saúde. No entanto, nem todos os doentes tiveram acesso ao tratamento, devido ao alto custo. Resultado: no mesmo período, quase 6 mil pessoas morreram por falta de tratamento.

(imagem ilustrativa – parentingupstream – pl)

Entre julho de 2018 e janeiro deste ano, quando houve um breve período de concorrência, o valor cobrado pela Gilead caiu 89,9%, chegando a R$ 64,84 o comprimido. Após a concessão da patente, pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), em setembro de 2018, e até 22 de junho último, final do período analisado, a média chegou a R$ 986,57, aumento de 1.421,5% por comprimido de sofosbuvir. Os dados são de um estudo do Grupo Direito e Pobreza, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). [A patente foi conseguida durante o governo golpistas de Michel Temer] 

O Brasil dispõe do sofosbuvir genérico, registrado na Anvisa pelo laboratório Far-Manguinhos, da Fiocruz, vinculada ao Ministério da Saúde. A produção pela autarquia federal em parceria com laboratórios brasileiros, porém, ficou inviabilizada pela concessão da patente.

Coordenado pelos juristas Calixto Salomão Filho e Carlos Portugal Gouvêa, o trabalho concluiu que desde o lançamento do medicamento no Brasil, em 2015, a Gilead vem abusando sistematicamente de sua posição dominante de mercado, com consequências econômicas e sociais extremamente graves.

 “O estudo mostra como um período breve de concorrência foi capaz de provocar preços muito mais baixos, o que deixou bem claro como a empresa pode praticar preços mais acessíveis quando há outras opções no mercado”, disse a advogada e pesquisadora em Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ana Carolina Navarrete. “Como entidade de defesa do consumidor, sabemos que a concorrência é um instrumento poderoso para redução de preços. Neste caso, o monopólio, além de injustificado, resulta em preços altos que beneficiam somente a empresa”, reforçou.

Tratamentos

“A cada 50 mil tratamentos com o sofosbuvir genérico, o SUS deixaria de gastar R$ 1 bilhão”, estima Pedro Villardi, coordenador do grupo de trabalho sobre propriedade intelectual (GTPI) da Rede Brasileira pela Integração dos Povos (Rebrip), que chegou a encaminhar ao INPI mais de seis documentos técnicos segundo a Gilead não se enquadra nos critérios para concessão de patente. “O sofosbuvir não é uma revolução tecnológica da Gilead, e a maior parte das pesquisas que levaram ao desenvolvimento do medicamento foram feitas em laboratórios públicos”.

Com base nos dados do trabalho do Grupo Direito e Pobreza, o Idec, a organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), a Defensoria Pública da União (DPU), a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) e outras cinco entidades ingressaram ontem (21) com uma denúncia no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) contra a Gilead.

A queixa é de abuso de posição dominante em relação ao medicamento sofosbuvir. A ilegalidade ocorre quando uma empresa que possui posição dominante, conforme disposto na Lei 12.529/11, adota condutas anticompetitivas com o objetivo de dominar o mercado de bens ou serviços em que atua.

A ação é inédita no Cade por ser a primeira sobre preços altos de medicamentos e também a primeira a ser proposta por grupos de pacientes e consumidores. De acordo com as organizações, preços abusivos cobrados por medicamentos compostos por sofosbuvir têm impedido que milhares de pessoas tenham acesso a um tratamento eficiente contra a hepatite C.

Conduta ilícita

Segundo a representação, “a conduta ilícita” levada a cabo pela Gilead “é grave e afeta de forma evidente o interesse público”. “São centenas de milhares de pessoas infectadas com acesso deficitário ao tratamento ou privadas de seu acesso, desrespeitando os princípios do Sistema Único de Saúde. Estamos diante de um histórico de óbitos, distribuição racionada e filas de espera por um medicamento capaz de curar a enfermidade e efetivamente recomendado pela OMS para o enfrentamento de uma grave ameaça global de saúde”, afirma a advogada Eloisa Machado, do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu), entidade responsável pelo tramite jurídico da ação junto ao Cade.

A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem realizado com sucesso tratamentos contra a hepatite C em 18 projetos, localizados em 14 países. Para isso utiliza combinações de medicamentos que frequentemente incluem versões genéricas do sofosbuvir. Neste ano, MSF adquiriu um tratamento completo contendo sofosbuvir por US$ 0,89 por unidade, cerca de R$ 3,60. “MSF é testemunha de que os altos preços estão por trás da oferta limitada ou inexistente de medicamentos em vários países. Mais de 65 milhões de pessoas ainda estão sem tratamento no mundo. Defendemos o acesso para todos”, afirmou Ana de Lemos, diretora executiva de MSF-Brasil.

Se mantido o ritmo atual, o Brasil não cumprirá a meta, alinhada à estratégia global de combate à doença, de tratar 657 mil pessoas até 2030. A próxima compra de tratamentos para hepatite C pelo Ministério da Saúde ocorrerá ainda em 2019.  Por isso, uma audiência pública prévia à realização do pregão está marcada para esta terça-feira (22) em Brasília.

As entidades pedem ao órgão brasileiro responsável pela defesa da concorrência que condene a Gilead com multa e imponha, em caráter liminar, o licenciamento compulsório do sofosbuvir. A medida suspenderia a patente do medicamento, concedida à Gilead, e permitiria sua produção e comercialização por outras empresas, aumentando a concorrência e, consequentemente, ampliando o acesso ao tratamento para centenas de milhares de pessoas que sofrem com a doença no Brasil.

O Ministério da Saúde estima que cerca de 700 mil pessoas precisam de tratamento de hepatite C no país, mas até junho de 2019, apenas 102 mil pacientes haviam sido tratados com os medicamentos mais novos e eficientes, dentre os quais se destaca o sofosbuvir. Dentre as hepatites, a de tipo C é a mais prevalente e letal no Brasil.

Assinam ainda a representação o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), o Fórum das ONGs Aids do Estado de São Paulo (Foaesp), Fórum de ONGs Aids do Rio Grande do Sul, Grupo de Apoio à Prevenção da Aids (Gapa/BA), Grupo Solidariedade é Vida e Universidades Aliadas por Medicamentos Essenciais (Uaem). (Da RBA)

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