No dia 18 de julho, as famílias do acampamento Marielle Vive em Valinhos (SP) levantaram apressadas, pois logo cedo tinham uma assembleia com clima de luta. A coordenação já tinha alertado que era para dormir de botina no pé e, por isso, a expectativa era grande para todas e todos, especialmente por parte de Luís Ferreira da Costa, que não perdia uma atividade.
A assembleia foi bonita e bem animada, regada a café quentinho, coado ali mesmo na cozinha coletiva. Depois de algumas músicas, logo veio a decisão coletiva: não ficariam de braços cruzados morrendo de sede! Aquele dia, era dia de luta! Luta por água! Luta por terra!
O combinado era ir até a estrada do Jequitibá, que fica bem em frente à entrada do acampamento, e ali abordariam as pessoas distribuindo panfletos, sementes e o alimento que colheram da terra ocupada há um ano e três meses. Pés na estrada, povo animado e os primeiros carros foram parando. Panfletos de mão em mão, milho verde, abóbora e quiabo sendo compartilhados. Priscila, Marielle, Adalberto, Luis e todo povo se sentiam bem, pois as pessoas estavam entendendo o motivo da luta e os apoiavam. A causa era justa, urgente e necessária.
O céu estava limpo e o sol iluminava as bandeiras em movimento. O asfalto quente sentia a força dos pés determinados pisando ligeiro. De repente, lá veio ela: uma caminhonete preta saiu da fileira de carros parados, seguiu pela contramão, reduziu a velocidade em frente à multidão e em seguida fez o que ninguém imaginava. As mãos daquele homem no controle de uma máquina de três toneladas seguraram firmes no volante e engataram uma marcha pesada. A caminhonete seguiu atropelando os manifestantes e fugiu em disparada. Ao chão várias pessoas feridas e entre elas o cinegrafista Carlos Filipe e Luis Ferreira, este atingido de maneira fatal.
Choro, desespero, correria, pavor e indignação. Seu Luis caído ao chão, bem perto do sonho da terra prometida. Vida interrompida por Léo Ribeiro, assassino preso horas depois. Crime de ódio motivado por discursos vociferantes da extrema direita que está no poder. Tombou o Luis, um senhor de 72 anos, cheio de planos. Dor de rasgar o peito de todo o MST e de sua família que, em meio a prantos, buscavam explicações para tamanha brutalidade.
Logo a solidariedade foi chegando em forma de notas, cartas, presenças, abraços e muita disposição para fazer do luto, luta incansável por justiça, terra e direitos. A solidariedade se transformou em compromisso político no ato realizado em frente à igreja matriz. A vida do trabalhador rural nordestino, migrante e guerreiro foi lembrada em emocionadas falas, na poesia afiada e no teatro militante.
Luis Ferreira nasceu em Caririmirim – hoje município de Moreilândia -, região pobre do estado de Pernambuco. Nesta cidade, atualmente, 91% dos moradores estão em condição de vulnerabilidade social. Dos 11.238 habitantes, 7.842 vivem em extrema pobreza no campo.
Nosso guerreiro viveu muito tempo no campo e seguiu migrando: do Pernambuco para o Ceará e de lá para o Maranhão. Em 1999 chegou em Campinas, onde aprendeu na marra a ser pedreiro. Trabalhando na construção civil, conseguiu trazer sua família para perto de si, no estado de São Paulo.
Tempos depois conheceu o MST nas reuniões do trabalho de base. Em abril de 2018, ergueu seu barraco na Ocupação Marielle Vive!, reaproximando-se do sonho da terra e de fazer uma casa bonita para a família. Ele era pai de 9 filhos, 16 netos e 3 bisnetos.
No acampamento, como membro do setor de infraestrutura, participou de todos os mutirões de espaços coletivos. Ergueu escola, banheiro, guarita, barracão, bodega, fez jardim e viu a vida florescer junto com seus companheiros e companheiras.
Era educando assíduo da EJA (Educação de Jovens e Adultos) e estava prestes a concluir os estudos iniciais de alfabetização, motivado a tirar sua carteira de motorista. Aprendeu a ler, escrever e calcular a realidade por meio do processo educativo inspirado em Paulo Freire e no método cubano “Sim, eu Posso!”.
Enterramos seu Luis, mais um sem terra morto na luta. Não queremos enterrar mais ninguém assim. Durante o velório, dona Cícera, educadora da EJA, trouxe o seu certificado de conclusão de curso. Todas e todos presentes testemunharam a formatura de um trabalhador que levou, sob seu caixão, o diploma de alfabetização, a bandeira do Santos – seu time do coração – e a do MST, que o trouxe para a terra, num reencontro com a gênese de sua história, marcada por tantos êxodos.
O assassino foi preso cerca de nove horas após o crime. Léo Ribeiro, comerciante, ostentava postagens de ódio e replicava mensagens de apoio ao presidente Bolsonaro em sua rede social. A vinculação entre o clima político conservador no país e o ato absurdo deste comerciante ficam evidentes. No entanto, é importante destacar que independente da motivação, quem comete um crime é obrigado a responder por seus atos e quem fica destilando ódio dos altos postos do poder, não vai descer para salvar ninguém. A sociedade brasileira precisa expurgar as manifestações autoritárias e preconceituosas de inspiração fascista que nos impedem de ser mais solidários e humanos.
Léo Ribeiro deve pagar por seu crime. Estamos atentos, mobilizando uma rede internacional de solidariedade para exigir que este crime não seja esquecido e nem caia na impunidade, motor para a violência e mais assassinatos contra os pobres.
Seu Luis não pode mais lutar, mas nós que aqui ficamos temos o compromisso de seguir sem vacilar ou desanimar. Organização, formação e luta devem fazer parte do nosso extraordinário cotidiano.
Não descansaremos enquanto a prefeitura não atender as reivindicações da comunidade por água, direito humano essencial. Lutaremos incansavelmente para que o acampamento se transforme em Assentamento Marielle Vive!, pressionando o INCRA e cobrando responsabilidades dos governos federal e estadual.
Do guerreiro Luis Ferreira fica a firmeza de uma frase, lamentavelmente concretizada pela força bruta de inspiração fascista, disseminada entre homens dirigindo caminhonetes. Seu Luís sempre dizia: “Só saio desta terra morto!”. (Da página do MST -Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST/SP)