Perseguição a Lula escancara absurdos do sistema prisional brasileiro pós-2016
Por Sandro Ari Andrade de Miranda
O sistema prisional brasileiro nunca foi um exemplo para o mundo, pelo contrário, ao longo da sua história não foram poucas as vezes em que fomos criticados ou condenados por Cortes Internacionais de Direitos Humanos e por vários motivos: tortura, tratamento degradante do preso, ausência de julgamentos, abuso de poder, incitação à violência, conluio das forças de segurança com o crime organizado, dentre outros.
A imagem de presídios abarrotados, com homens e mulheres jogados em locais com condições sub-humanas são comuns, assim como movimentos internos de extermínio dos presos não alinhados com as facções ou massacres como o do Carandiru.
Duas certezas existem sobre as nossas penitenciárias: a primeira é de que não servem para ressocializar ninguém e são portas de entrada de crimes de menor potencial ofensivo para o crime organizado; a segunda é de que são espaços de abuso sistemático do Estado e violação de direitos humanos.
A prisão de Luiz Inácio Lula da Silva sem nenhuma prova, tipicidade ou elementos razoáveis que sustentassem a conduta judicial são parte desta narrativa vergonhosa, de um país que viola direitos humanos sistematicamente e tenta repassar ao mundo a imagem de nação moderna e democrática.
Prova destas violações foi a condenação recente do país pela Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em virtude da prisão do Lula com base em “execução provisória de sentença”, ou seja, não ocorreu trânsito em julgado nem esgotamento das instâncias recursais previstas legalmente.
Pelo menos dois recursos constitucionalmente obrigatórios são cabíveis, o especial e o extraordinário. Se tais instrumentos fossem meramente decorativos, não estariam no corpo da Constituição, especialmente o extraordinário, pois a prisão sem provas viola cláusulas pétreas da referida Norma Fundamental.
A execução provisória é um procedimento que não existe no direito penal brasileiro. Portanto, é ilegal e, em decorrência lógica, inconstitucional. Mesmo assim, criado pelo STF em 2016 por meio de uma decisão absurda. Vejam, por exemplo, o que diz o art. 283 do Código de Processo Penal Brasileiro:
Art. 283. Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
A prisão em flagrante, a provisória e a preventiva são medidas processuais de alcance limitado, que visam impedir a continuidade delitiva ou prejuízos à produção de provas. Mas possuem como características principais, ou deveriam possuir, a sua condicionalidade a situações excepcionais e a sua temporariedade. Nenhuma delas substitui o julgamento definitivo ou o devido processo legal. Volto ao tema mais adiante.
Com relação à execução provisória da sentença penal, chamada de “execução da pena por condenação em segunda instância” é uma criação jurisprudencial, sem fundamentação legal, forçadamente criada pelo STF no dia 17 de fevereiro de 2016, no HC 126.292/SP. Tal posicionamento foi classificado como “decisão infeliz do Tribunal” pelo Ministro Marco Aurélio e de absurda pelo Decano Celso de Mello, ambos derrotados pela maioria em 7 a 4.
O que há por trás desta decisão? Cumprimento da Constituição? Impossível, como já demonstramos. Defesa de “direitos humanos da sociedade”, como afirmou recentemente a Procuradora Raquel Dodge? Menos ainda, pois ninguém defende direitos humanos violando cláusulas pétreas. A resposta mais exata é conveniência política do STF. Uma resposta absurda às sistemáticas críticas recebidas em virtude da ausência de julgamento de parlamentares que gozam de foro privilegiado. Não há nenhum argumento jurídico que sustente tal aberração.
Além disso, a mesma decisão permitiu condenações políticas pelo esquema Lava-jato, onde o caso Lula da Silva é o mais escandaloso. Há evidente violação do direito à presunção da inocência.
Ocorre que a decisão do STF gerou um efeito perverso em cadeia e contribuiu para superlotar, ainda mais, os nossos presídios. Segundo estatística parcial do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, 1/4 dos presos brasileiros (24,65%) são condenados apenas em segunda instância, portanto, estão presos para execução provisória das sentenças.
Em termos absolutos, 148.842 pessoas que tiveram as suas garantias ao devido processo legal e à presunção da inocência violadas depois de 2016 (Banco Nacional de Movimento de Prisões, CNJ, ago/2018).
Mas os números ainda são piores. Utilizando a linguagem do próprio CNJ, 40,03% da população carcerária é formada por “presos sem condenação”, ou 241.090 pessoas. São prisões cautelares, temporárias ou preventivas.
Isto significa que 64,68% dos presos do Brasil poderiam estar soltos se a Lei e a Constituição fossem cumpridas. Se alguém disser que isto é uma situação normal, ou uma forma de proteção da sociedade, recomendo rever os seus conceitos. Na verdade é a prova absoluta de falência do nosso sistema de justiça e de que vivemos em regime de exceção ou de fascismo societal, para utilizar a linguagem abalizada de Boaventura de Sousa Santos.
O próprio CNJ desconstitui o argumento dos defensores dos excessos judiciais e das prisões, pois apenas 17% dos presos provisórios são acusados de crimes com violência contra a vida ou à liberdade de alguém, como homicídio, latrocínio ou estupro. Mesmo assim, a pesquisa não indica se tais homicídios seriam dolosos, o que permite a presunção de presos por crimes culposos (sem intenção).
O grosso dos presos é “acusado”, pois não foram julgados em definitivo, de crimes como tráfico de drogas (29%) ou contra o patrimônio (33%). Ou seja, não são crimes violentos, até porque apenas 1% dos presos é acusado de pertencer a algum tipo de organização criminosa.
No tráfico, por exemplo, o termo utilizado é indução, instigação ou auxílio ao consumo, ou seja, estamos falando do varejo, dos pequenos criminosos, e não dos 1% que representam o comando dos crimes. Muitos dos presos, depois de condenados obviamente, poderiam passar por processo de ressocialização, como prestar serviços à comunidade e outras penas alternativas, diminuindo o nosso caos prisional.
Mas muitos não possuem sequer assistência judicial, pois faltam defensores públicos na maioria dos Estados. Sim, são os pobres que sofrem nas prisões abarrotados, ou perseguidos políticos, como Lula.
Portanto, como demonstramos acima, quem afirma que a soltura de presos provisórios e temporários representa uma ameaça social ou está mal-informado ou querendo manipular a opinião pública.
Deveria ler os dados do CNJ que são de acesso livre para qualquer cidadão ou cidadã. Prisão nunca resolveu o problema da segurança pública e, nas palavras do grande mestre Cesare Beccaria, deveria ser a última medida punitiva adotada pelo estado.