Palmitagem: a vacilada dos homens negros
.Por Ricardo Alexandre Corrêa.
“Mais que qualquer grupo de mulheres nesta sociedade as negras têm sido consideradas só corpo sem mente” bell hooks
Nas redes sociais são frequentes as discussões entre homens negros e mulheres negras a respeito da “palmitagem”, algumas dessas tretas são acaloradas.
A palmitagem é um neologismo que consiste nas relações afetivas entre homens negros cis héteros e mulheres brancas; os homens são chamados de “palmiteiros”. Mas para compreendermos a confusão devemos considerar o racismo trabalhando no destino dos corpos negros, principalmente, das mulheres.
Desde o período colonial, as mulheres são consideradas objetos, e somente muito cinismo para discordarmos dessa verdade. Aquelas ideias do sociólogo Gilberto Freyre sobre paraíso racial e harmoniosa convivência entre escravos e senhores, eram embustes.
Oras, inexiste harmonia a base de estupro, correto? Lélia González, feminista e antropóloga, fez uma reflexão pedagógica sobre esse assunto:
(…) a gente deve entender que esse papo de que a miscigenação é a prova da “democracia racial” brasileira não está com nada. Na verdade, o grande contingente de brasileiros mestiços resultou de estupro, de violentação, de manipulação sexual da escrava. Por isso existem os preconceitos e os mitos relativos a mulher negra: de que ela é mulher fácil, de que é boa de cama.
Através de mecanismos racistas, os negros têm sido vítimas de estereótipos negativos que moldam o tecido social. Exemplo disso está no campo da estética, no qual é considerado que pessoas brancas, ou socialmente brancas, são modelos de beleza.
Isso confirma o ensinamento da psicanalista Neusa Santos Souza (1990) quando apontou que é a autoridade branca que define o belo e a contraparte. Imagine o quanto minha geração foi impactada tendo como referência de beleza: Vera Fischer, Luíza Brunet, Bruna Lombardi etc.
Até o namoro do Pelé com a Xuxa, nos anos 80, tornou-se o sonho de muitos homens negros. Nas ruas era comum ouvirmos que “negão é chegado numa loira”, apesar da generalização, há verdades que pairam nessa ideia.
Por outro lado, as mulheres negras seguiam hipersexualizadas, preteridas nos espaços de maior visibilidade e submetidas a relacionamentos instáveis — nesta categoria, a maioria dos homens com quem se envolviam queriam apenas saciar a vontade carnal sem ampliar laços de afetividade.
O ditado “brancas pra casar, mulatas pra fornicar e negras pra trabalhar” expressava a alma da nossa cultura, mas o machismo nunca permitiu que os homens admitissem essa condição.
O mercado de trabalho também desprezava as mulheres negras, pois as atividades com melhores remunerações, e elevado status social, eram reservados às mulheres brancas por causa da estética aceitável.
Assim sendo, os homens negros foram condicionados nas suas instâncias psicológicas a desejarem mulheres brancas. Inclusive, existem pesquisas que apontam o sentimento de embranquecimento quando envolvidos com essas mulheres. Ou seja, o racismo opera na reprodução dele mesmo a partir da vítima, fazendo com que a mesma negue a identidade negra.
No clássico, Pele Negra, Máscaras Brancas, do psicanalista Frantz Fanon, há uma passagem interessante no capítulo O homem de cor e a branca:
“Da parte mais negra de minha alma, através da zona de meias-tintas, me vem este desejo repentino de ser branco (…).Amando-me ela me prova que sou digno de um amor branco. Sou amado como um branco. Sou branco. Seu amor abre-me o ilustre corredor que conduz a plenitude (…)”
Como consequência das relações interraciais, iniciando no estupro, passando por políticas de embranquecimento até o racismo estrutural vigente, a palmitagem contribuiu para os números expressivos de pessoas miscigenadas.
Uma pausa: este texto não é um manifesto pregando “apartheid afetivo”, mas uma leitura crítica da realidade. E, também, não pretendo fazer com que os homens negros não se debrucem nos trabalhos e relatos produzidos pelas mulheres negras acerca da própria solidão. Precisamos ouvi-las de qualquer maneira. Nenhum trabalho elaborado por homens alcançará a profundidade de quem sente a opressão na pele. Retomemos.
Qualquer pesquisa na internet sobre relacionamentos de artistas, atletas ou homens negros que alcançaram algum status social, mostrará o amplo espectro de palmiteiros.
Ainda que Fanon tenha revelado mecanismos psíquicos presentes nos relacionamentos interraciais, dando formas nas subjetividades, fundados e renovados com o racismo estrutural, não significa que devemos isentar os palmiteiros da culpa pela colaboração dessa ordem perniciosa que mantém a solidão das mulheres negras.
A resistência e quebra de paradigmas se inicia com valorização dentro do grupo oprimido, priorizando relacionamentos entre pessoas negras e combatendo a hipersexualização dos seus corpos. Urge aos homens abandonarem o machismo e compreenderem que as mulheres negras são muito mais do que corpos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FANON, FRANTZ. Pele negra, máscaras brancas. Rio de Janeiro: Editora Fator, 1983.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005.
GONZALEZ, Lélia. Democracia Racial? Nada disso!. Mulherio, São Paulo, ano I, n. 4, p. 3, 1981. Disponível em: . Acesso em: 09 dez. 2018
HOOKS, B. Intelectuais Negras. Revista Estudos Feministas, V.3, nº 2, 1995.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1990.