Estatuto do Nascituro é a legalização da cultura do estupro
.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.
A futura Ministra da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, já virou piada internacional por causa da sua manifestação em que afirma ter encontrado Jesus em uma goiabeira. Todavia, as suas posições políticas não tem nada de divertidas, ao contrário, servem para alimentar uma das piores fontes de violência do nosso país: a cultura do estupro.
Aliás, a própria Damares alegou em entrevista ao Jornal The Intercept ter sido vítima, quando jovem, de violência sexual praticada por um missionário que foi recebido por sua família, algo que reafirma uma estatística já conhecida, 82,7% dos estupros no Brasil são realizados dentro da casa da vítima, envolvendo parantes, amigos ou conhecidos.
Mas se isto deveria abrir os olhos da futura Ministra, acabou servindo como uma justificativa para a criação do seu “arquétipo heroico”. Hoje ela é um símbolo do que há de pior no conservadorismo brasileiro, sendo defensora do “projeto escola sem partido”, criadora de falácias como o “kit gay”, e feroz militante pela aprovação do “Estatuto do Nascituro”.
Ainda de acordo com o The Intercept, ela é criadora de um canal no Youtube, e chegou a afirmar que a ex-Prefeita de São Paulo, Marta Suplicy (MDB-SP) teria financiado uma pesquisa sobre “masturbação de bebês”.
Defende notícias tão absurdas que a pesquisadora da Universidade Metodista de São Paulo, Magali Cunha, escreveu um artigo demonstrando que as informações divulgadas por Damares na internet não tinham base concreta ou fundamentação real. Em geral, eram “inverdades, falsas associações e generalizações” sem identificação de quaisquer fontes.
Outro fato que sozinho deveria servir como base para o afastamento de Damares Alves de quaisquer órgãos ligados aos direitos humanos, especialmente se considerarmos que a FUNAI será vinculada à referida pasta, é a realização de duas investigações abertas pelo Ministério Público Federal contra esta, em virtude da manutenção da ONG Atini, da qual faz parte, e que retira crianças indígenas de suas famílias, no povo Sataré-Mawé, para “doutriná-las dentro dos seus conceitos religiosos”, algo que fere tanto a Constituição, quanto tratados e acordos internacionais que protegem os povos indígenas.
Mas se a vida de Damares não lhe recomenda para um posto político de tamanha importância, a sua prioridade anunciada no cargo é mais uma agressão contra a dignidade humana.
Nas suas entrevistas, a futura Ministra afirma que pretende se empenhar, prioritariamente, na aprovação do Estatuto do Nascituro, projeto de Lei que prevê, dentre outros absurdos, a “bolsa estupro”.
A proposta de Lei é eivada de vícios de constitucionalidade e fere frontalmente a Convenção de Direitos Humanos das Nações Unidas de Viena, de 1993, especialmente no que se refere à “liberdade sexual e aos direitos reprodutivos das mulheres”.
Não existe nenhuma justificativa lógica, política ou racional para criar uma norma que verse sobre o nascituro além do já previsto no Código Civil de 1992.
Na prática, “defender o nascituro” é um eufemismo, uma mera figura de linguagem que significa “criminalizar as vítimas de violência sexual”.
O projeto foi proposto por homens, seu relator no Congresso é um homem, pastor evangélico. Não há nenhuma preocupação com a violência real, mas apenas a de esconder a verdade pagando uma bolsa para a vítima de estupro que aceitar manter a criança, ou seja, aceitar ser vítima de outra violência.
Se considerarmos que 70% das 50 mil vítimas de estupro por ano, no Brasil, são crianças e adolescentes, o projeto ainda compromete as estas na fase em que se encontram vulneráveis na sua formação psicológica.
Ou seja, é a legitimação do abuso, da cultura da violência, da cultura do estupro. Uma tentativa de silenciar as vítimas e atacar a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres. Uma prova descarada de misoginia e de revolta do patriarcado contra a emancipação feminina. Um segundo estupro, travestido de preocupação.
O Estatuto do Nascituro é mais um instrumento para esconder uma verdade gritante que salta aos olhos nos indicadores do Ministério da Saúde, da Polícia Civil, do IPEA e outras instituições de pesquisa: “o estupro é um crime cometido dentro do meio familiar”.
Ele é resultado de um modelo cultural machista que submete à mulher a diversos tipos de violência todos os dias, seja física, moral ou simbólica. “São os chamados homens de bem que cometem estupro” e, muitas vezes, quando não é praticado no âmbito familiar é executado por colegas de trabalho ou por autoridades religiosas.
O maior escândalo de violência sexual contra crianças foi identificado dentro da Igreja Católica e envolveu padres de todo o mundo. No Brasil, não faz duas semanas estourou outro escândalo, agora contra mulheres adultas em estado de vulnerabilidade psicológica, executada por um religioso.
Em síntese, este é um crime que desmonta os pilares de uma sociedade conservadora e patriarcal: família, tradição e religião. Daí a preocupação em abafá-lo com leis hipócritas ou outros meios. E, ao contrário do que afirma a futura Ministra, a gravidez, quando advinda de estupro, não é um problema que dura apenas nove meses. É um dano à dignidade humana e feminina que dura a vida toda, ainda mais dentro de uma sociedade desigual como a nossa.