A democracia parada no abismo
.Por Sandro Ari Andrade de Miranda.
1. A Democracia no Abismo
Se pudesse declarar uma grande vencedora do primeiro turno das eleições de 2018, esta seria “a negação da política”. Já a grande derrotada, indubitavelmente, foi a democracia. E aqui não falo da significativa parcela da população que optou por um candidato que defende abertamente a tortura, o machismo, a homofobia e o racismo. Mas da destruição de vários alicerces que sustentam um sistema democrático saudável, especialmente dentro do modelo representativo.
A derrocada do MDB (PMDB) e do PSDB nas urnas teve, como contrapartida, o crescimento substancial de uma sigla de aluguel, o PSL, que abriga o atual candidato à Presidência Jair Bolsonaro (RJ) e uma série de outras figuras excêntricas, distantes de qualquer ideal de política racional. Outro exemplo negativo foi o excessivo número de militares da reserva eleitos para o Parlamento Federal e para os Estaduais, algo que não acontecia desde o período pré-golpe de 1964.
É bem verdade que muitos desses votos foram mero resultado de protesto ou de alienação, mas há um significativo crescimento de ideais autoritários, especialmente dentro da classe média e dos setores que não conseguem ingressar no mercado de trabalho em razão das políticas de arrocho neoliberais, as quais seguem sendo um fracasso prático, apesar de um certo sucesso ideológico.
Em termos gerais, o PT, o PMDB (MDB) e PSDB sempre foram os fiadores do sistema democrático posterior à Constituição de 1988. Este acordo foi rompido com o golpe parlamentar de estado de abril de 2016 patrocinado pelos 2 últimos partidos, e os resultados foram catastróficos. Dos três partidos, apesar de toda a pressão midiática e dos seus próprios erros (algo que será objeto de análise específica mais adiante), o único que demonstrou força nas urnas foi o PT, levando o seu candidato à Presidência ao 2º turno das eleições majoritárias, elegendo a maior bancada na Câmara e 3 Governadores ainda no 1º turno. Já o PMDB e o PSDB fracassaram totalmente, embora o segundo ainda possa sobreviver com governos estaduais no segundo turno.
Se o PMDB segue divido em sem um rumo definido, o PSDB já demonstra alguns sinais de reconhecimento das próprias falhas. Uma prova disto é a fala do seu presidente, Tasso Jereissati, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, em setembro deste ano. Para o tucano, o partido cometeu uma série de erros “ao questionar os resultados da eleição de 2014”, ao incentivar a divisão política do país, ao apoiar o golpe de 2016 e ao aderir ao Governo Temer. Entre estes erros estava a tentativa de inviabilizar o Governo Dilma, “votando contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT” (SIC), disse ele.
Mas a crise ideológica do PSDB é ainda muito maior. Se no passado o partido foi formado por intelectuais que se posicionaram contra a ditadura, como Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas e José Serra, o atual perfil dos seus novos quadros se assemelha à velha UDN, mas vestindo ternos. Marchezan Júnior (PSDB/RS), Prefeito de Porto Alegre e os dois principais candidatos do partido a Governos Estaduais, Eduardo Leite (PSDB/RS) e Dória Júnior (PSDB/SP) são quadros com evidente perfil autoritário, distantes dos princípios sociais-democráticos que fundaram o partido, quiçá da chamada “terceira via”, moldada inglês de Tony Blair. Tanto que os três já firmaram posição apoiando Jair Bolsonaro (PSL/RJ), assumindo uma postura raivosa que contrária, por exemplo, a posição de FHC.
2. A Retórica Fascista
Mas existem dois outros fatores relevantes que sustentam essa caminhada da democracia brasileira para o abismo: a retórica da corrupção e do ódio e o abandono (fastio) com a política. Começamos pela última.
Nas grandes democracias ocidentais, onde o voto é facultativo, a elevada abstenção ou “fastio com a política” (termo cunhado por Friedrich Muller) é uma preocupação. A resposta para enfrentar este fenômeno vinha sendo copiada exatamente da política latino-americana, que era a emergência da “participação social”. Países como Estados Unidos, Alemanha, Espanha, Portugal, Suíça e Grã-Bretanha, apenas para citar alguns exemplos, têm investido pesadamente em consultas, plebiscitos e assembleias populares, o que tem alimentado uma melhoria do ambiente político interno, mesmo com a presença de governos conservadores (EUA e Alemanha). No Brasil ocorre exatamente o contrário, a Política Nacional de Participação Social, criada no Governo de Dilma Rousseff (PT) foi derrubada por Decreto Legislativo votado às pressas e na calada da noite em 2014. Este, por sinal, foi o primeiro estágio para a ação golpista de 2016.
Sem participação social e com uma campanha de superlativação da corrupção os números de eleitores que abandonam o processo politico é cada vez maior. Nas eleições de 2016 tivemos exemplos grotescos. Em cidades como Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Recife, o número de votos brancos, nulos e abstenções superou o de qualquer candidato a Prefeito. No Rio de Janeiro, por exemplo, este número superou 40% do eleitorado, patamares incomuns para a realidade brasileira.
Pois o fenômeno se repetiu em 2018 nas eleições presidenciais. Mais de 30 milhões de eleitores, ou 20,3% do eleitorado, sequer compareceu às urnas. Com 24,6%, o Mato Grosso foi o Estado com o maior índice de abstenção, mas em capitais como Recife este número superou 35%, valendo o mesmo para cidades anteriormente citadas.
Aqui é importante frisar que o voto biométrico colocado pelo TSE em todo o país contribuiu, e bastante, para a elevação das abstenções. Em algumas cidades ele foi um fracasso total e as filas foram imensas. Mas o grande responsável pelo elevado número de abstenções (sem contar os votos brancos e nulos) é o crescimento de uma descrença na política, o que é fortalecido pelo marketing da corrupção e da violência.
A campanha de caça às bruxas promovida por alguns grupos, especialmente os meios de comunicação, dão a impressão de que o país está mergulhado numa onda de corrupção sistêmica e generalizada, o que não é verdade. Em termos absolutos a corrupção no serviço público é muito inferior ao encontrado na iniciativa privada. Por sinal, os grandes artífices dos maiores esquemas de corrupção são empresas tradicionais que utilizam as mesmas táticas desonestas em licitações e no mercado financeiro.
Ocorre que a retórica da corrupção e a disseminação no ódio são dois pontos de sustentação do movimento neofascista. Não existem argumentos racionais, toda a crítica é feita sob base emocional-afetiva, na busca de um “falso mito salvador da pátria”, na construção de “falsos inimigos” (o outro do nazismo), na pregação do medo, na busca da violência como alternativa, na disseminação de notícias falsas e meias verdades.
Um dos maiores exemplos da criação de “falsos inimigos é o chamado antipetismo”, dirigido aos militantes do Partido dos Trabalhadores, inclusive já com vítimas de espancamento e fatais. Mas a xenofobia contra nordestinos, a homofobia e a misoginia também são traços deste movimento neofascista. São práticas semelhantes à adotadas pelo nazismo alemão contra judeus, ciganos, comunistas, homossexuais, negros e deficientes físicos. Aliás, até o mito do “sulista heroico e trabalhador” (outra farsa) combina com a lógica do arianismo hitlerista. Nenhuma destes argumentos preconceituosos possui base real. Tomemos alguns exemplos.
3. A Verdade dos Fatos
O PT é acusado de ter disseminado um modelo de corrupção estrutural no país, o que não é verdade. Muito embora alguns militantes do partido estejam envolvidos com casos de corrupção, o que afeta todos os partidos com representação no congresso e em todos os níveis, o PT está longe de ser o partido com maior número de envolvidos em corrupção ou de ter integrantes investigados por operações da polícia como a Lava-Jato. Esta última, por exemplo, fulmina toda a bancada atual do PP, boa parte do DEM, do PSD, do PSDB, do MDB e outros partidos menores. Inclusive o candidato do PSL/RJ à Presidência, Jair Bolsonaro, é investigado por lavagem de dinheiro doado pela empresa JBS ao seu antigo partido, o PP.
Em termos absolutos, desde 2000, conforme dados do Tribunal Superior Eleitoral de 2018, o partido com maior número de políticos cassados por corrupção é o Democratas – DEM (20,4% do total). Em segundo vem o partido com o maior número de filiados no país, o MDB/PMDB (19,5%). O terceiro também é o terceiro maior partido, o PSDB (17,1%). Apenas estes três partidos representam quase 60% dos casos de corrupção no país. O quarto colocado é o PP (7,7%), o quinto é o PTB (7,1%), e o sexto o PR (5,0%). O PT, segundo maior partido do país em número de filiados, maior bancada no Congresso e que governou o Brasil por 14 anos, é apenas o sétimo colocado, com menos de 3% dos casos considerando números absolutos. Ou seja, pelo tamanho do partido e pelo grau de envolvimento com poder, os números de casos de corrupção está de acordo com os parâmetros internacionais de normalidade. O mesmo não pode ser dito de partidos menores, como DEM (principal apoiador de Bolsonaro e campeão em corrupção), o PP e o PTB.
Se o antipetismo não se sustenta como argumento real, menos ainda o preconceito do Sul e do Sudeste contra os Estados do Nordeste. De acordo com o IBGE, a região com maior crescimento econômico em termos percentuais desde 2002, algo em torno de 80% é a Norte, seguida do Centro-Oeste e do Nordeste. O Sul é o quarto colocado e o Sudeste o quinto, abaixo da média nacional, mesmo com a exploração do pré-sal no Rio de Janeiro. Ou seja, se os Estados do Sul e do Sudeste ainda possuem os maiores PIBs, quem empurra a economia do país para a frente são as regiões Norte e Nordeste. Se considerarmos a média anual de crescimento, desde 2009 os melhores indicadores são do Piauí, seguido por Pernambuco e pelo Ceará, três estados do Nordeste. São Paulo é o penúltimo colocado, afrente apenas do pequeno Sergipe.
Mas não é apenas no campo econômico que o Nordeste avança. Com exceção do Sergipe, todos os Estados da região cresceram e estão atingindo a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, com destaque para o Ceará, Estado que mais cresceu em todo o país. Em contrapartida o Rio Grande do Sul, que tinha bons indicadores até 2014, em 2017 ficou abaixo da média e demonstra tendência de queda. Outro estado que cresce muito no campo da educação é o Maranhão, administrado pelo PCdoB, e que paga o maior piso do magistério no país.
E aqui podemos estabelecer uma diferenciação. Enquanto o Ceará, administrado por Camilo Santana (PT) investiu na universalização e expansão do ensino básico, o Rio Grande do Sul, administrado por José Ivo Sartori (MDB), adotou a prática neoliberal de redução no número de escolas, atrasou repasses para os municípios e está parcelando o salário dos professores desde 2015.
Em síntese, os mitos que alimentam a onda de ódio do Sul e do Sudeste do país não possuem base de sustentação real, mesmo assim estão sendo disseminados pela mídia televisa e pela internet.
4. Os Riscos Reais da Onda Fascista e da Anti-política
A política, como já diria Aristóteles, é uma atividade humana natural, pois o homem é, essencialmente, um animal político. Ela é um instrumento de mediação, que permite o diálogo, o conflito racional não violento e a construção de alternativas. Quando a política é abandonada ou esquecida, temos o campo aberto para a emergência do irracional e da violência. Daí surge o fascismo!
O fascismo é um movimento político de extrema direita que não se baseia em fatos ou na verdade, mas em argumentos vazios de senso comum, a grande maioria sem conteúdo real. A sua estratégia é emocional e afetiva: o medo da violência, a violência como alternativa à violência, a corrupção generalizada, a exploração de uma região por outra, dentre outras. Quando seus argumentos são confrontados com dados concretos, eles se esfacelam como poeira, contudo, sobrevive o elemento emocional-afetivo.
Como destacam tanto Freud e Eric Fromm, a gênese do fascismo está na frustração, na fragilidade cognitiva e na pressão das autoridades anônimas (como meios de comunicação de massa e notícias falsas, por exemplo). Mas não podemos esquecer, em referência a Arendt, do efeito causado pela banalização da violência. Quando alguém vai para a imprensa e trata a tortura como algo normal, está incentivando a disseminação da violência. Este é outro efeito perverso do fascismo, para uma militância conduzida apenas por elementos emocionais, a reprodução da violência é uma consequência dos argumentos das suas lideranças.
É por isto que os resultados do primeiro turno nas eleições brasileiras são tão assustadores. Não estamos diante do confronto de projeto políticos distintos fundados em programas partidários, mas num confronto entre civilidade e obscurantismo. Qualquer vitória do fascismo, por menor que seja, é uma derrota para a humanidade. Isto porque, em último instância, o fascismo é a própria negação da humanidade.