.Por Alexandre Oliva.
Sempre tive esse palpite de que não teria uma vida muito longa.
Atribuía à obesidade. Tendo nascido durante a ditadura mas recebido o
direito de votar na primeira eleição direta para presidente em
décadas, nunca imaginei que fosse morrer lutando por democracia, como
vem se desenhando o futuro imediato.
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Fui privilegiado a vida inteira. Nasci em família branca, de classe
média-alta, estudei em escolas da elite curitibana, tive acesso a
computadores e me interessei muito por eles desde cedo, estudei e me
dediquei muito para alcançar habilidades raras que têm me propiciado
uma vida independente e confortável. Casei, tivemos uma filha,
sinto-me querido pela família de minha companheira.
Nada disso me coloca em grupos alvo de exclusão, discriminação ou
perseguição, muito pelo contrário, sou o típico privilegiado social,
talvez com exceção da nerdice e da gordura. Apesar dessas
características indesejáveis mais evidentes, continuo sendo convidado
a palestrar com frequência sobre os temas que creio relevantes. Até
agora, nada tinha de que reclamar. Mas, de um momento para outro,
minha vida ficou em perigo, pois desde domingo sei que estou na mira
do capetão.
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Acredito que justiça social passa por redução das desigualdades, por
oportunidades iguais para que esforço e mérito individuais prevaleçam
sobre privilégio herdado. Desde que comecei a pensar no assunto,
ainda jovem na decadente ditadura que começara antes de eu nascer,
segui uma linha de pensamento de esquerda, para desespero de meus
familiares mais conservadores. Só isso já bastaria para me enquadrar
como membro da gangue dos vermelhos que o capetão pretende exterminar,
expulsando-nos do país ou jogando-nos para apodrecer no xilindró.
Conheci o Software Livre, a causa que me escolheu, quando me mudei de
Curitiba para estudar em Campinas. Na universidade, tomei o primeiro
contato com programas de computador feitos não para vigiar e controlar
os usuários, como faz a maioria dos programas usados hoje em dia, mas
para respeitar e defender liberdades e direitos deles.
Poucos anos depois, tive o privilégio de receber o fundador e maior pensador dessa
linha filosófica no mundo, hoje um grande amigo meu. Militamos juntos
nessa causa, ameaçando, ou ao menos tentando ameaçar os grandes
monopólios das indústrias de software, de hardware e de serviços
através da grande rede, que pretendem transformar o seu computador, de
mesa ou de bolso, numa ferramenta que, ao invés de lhe servir, serve
àqueles que desejam vigiá-lo, controlá-lo e conhecê-lo para
influenciá-lo melhor. Apesar do nome, não se trata de um movimento
tecnológico; sou ativista de um movimento social e político, outro
grupo que o capetão pretende perseguir e exterminar.
Graças aos pensamentos desenvolvidos nessa empreitada e ao acesso a
ferramentas robustas de criptografia, anonimato, comunicação
resistente a censura e de segurança contra controle remoto, tenho
rodado o mundo ensinando pessoas a, entre outras coisas, enfrentar
tiranias. Finalmente estou prestes a ter oportunidade de colocá-las
todas em prática, pela minha própria integridade física!
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O problema é que ficou tarde demais. Crendo viver sob uma democracia,
em que não se duvidava da liberdade de expressão e de pensamento, já
me posicionei contra as propostas do capetão para seu possível futuro
governo tirano. Caso prevaleça seu discurso de ódio, do domingo
passado e de outras ocasiões, não devo viver muito mais.
É que não me parece justo eu me valer do meu privilégio econômico para
me exilar e deixar o enfrentamento do monstro para outros, menos
privilegiados, mas igualmente inocentes (ou culpados por omissão?)
quanto eu.
Tampouco quero viver, nem me parece viável eu conseguir viver, sem
expressar o que penso, sem liberdade, sem respeito à diferença, sem
civilidade. Sou de uma subespécie que não costuma sobreviver em
cativeiro.
Pode até ser que eu sobreviva à tortura (talvez por não resistir e
acabar dizendo o que me exigissem), não apodreça no xilindró e tenha a
sorte e o privilégio de viver para conhecer meus futuros netos. Ao
contrário de meu avô, que veio ao Brasil derrotado, fugitivo de
guerra, mas pouco viveu após o nascimento de seu primeiro neto. Ao
contrário das tantas vítimas da ditadura anterior, ditadura que só
experimentei através dos ingênuos sentidos de uma criança, e vítimas
que tiveram suas vidas ceifadas pelo ídolo do capetão e por seus
semelhantes. Vítimas como as que vêm sendo atacadas e mortas por
atuais seguidores do capetão, apavorante amostra do que pode vir por
aí, a depender da sua escolha no próximo domingo.
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Dói ver a quantidade de gente encantada com esse discurso de ódio.
Gente achando que toda essa violência vai ser direcionada só “contra o
inimigo”: negro, índio, mulher, pobre, gay, ou ainda petista, ativista
“terrorista”. Que seus eleitores estarão a salvo, ou ao menos mais
seguros, quando o (velho) novo regime estiver em pleno vigor.
Nem sou petista! Até simpatizo, mas acho o PT moderado demais. Se
tento jogar futebol, fica evidente que tenho duas pernas esquerdas!
Tampouco sou terrorista, mas já disse e escrevi, depois de perguntarem
há um tempo o que eu seria em não lembro quantos anos, que achava que
seria terrorista. Não porque mudaria minhas práticas, esclareci de
imediato, mas porque me parecia que minhas práticas de Software Livre,
de combater a vigilância digital por corporações e governos, de buscar
garantir a possibilidade de comunicações privadas e controle sobre os
próprios dispositivos computacionais, viriam a ser consideradas
terrorismo. Quisera eu ter errado na previsão!
Tampouco posso dizer que tenha acertado perfeitamente. Não são as
práticas específicas que estão prestes a fazer de mim um terrorista.
Nem é minha simpatia pelo PT. É o mero fato de ser um ativista
sócio-político, ainda por cima de esquerda radical.
Mas, de verdade, nem isso importa muito. No novo regime, qualquer um
que ousar sair da linha, atirar uma pedra, ou mesmo uma bolinha de
papel contra o regime, será alvo e se tornará vítima de sua ira e
violência. Mesmo que não tenha votado no vermelho. Mesmo que nem
tenha votado! Mesmo que tenha votado como você pretende!
Pouco importa a estrela ou sua cor: o ódio é daltônico, e ficam
vermelhos a face, os olhos e finalmente as mãos de quem pelo ódio se
cega. Irônico, mas previsível, que o ódio ao vermelho acabe se
voltando contra quem o odeia.
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Você, que foi condicionado a odiar o vermelho e pretende com isso
guiar seu voto, se não quiser suas mãos manchadas para sempre com a
odiada cor do meu sangue, meu e de muitos outros que ousam pensar
diferente, acorde e vote por quem esteve no poder durante mais de
década e não nos transformou em ditadura, e não por quem já está nos
transformando em ditadura e dando fartas amostras de crimes e
corrupção antes mesmo de terminar a eleição.
Se não for por empatia, já que quase certamente porá fim à minha vida,
que seja por autopreservação, já que ditaduras não são regimes de
muitos amigos.
Se ainda estiver em dúvida, escolha aquele que lhe permitirá mudar de
ideia e fazer oposição depois. Há apenas um candidato assim.
E se vencer o capetão, nos vemos em breve do outro lado.
Se houver outro lado…