Por Cecília Figueiredo
Sem expansão de vagas de universidades públicas para a formação, corte na bonificação para atrair profissionais à especialização de Medicina de Família e Comunidade e também com o congelamento de obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) – para qualificar a infraestrutura dos postos de saúde -, o Programa Mais Médicos chega ao quinto ano de atividade com muitos desafios e falta de recursos, retirados pela Emenda Constitucional (EC) 95, que congelou os investimentos em saúde até 2036.
O médico sanitarista, Hêider Aurélio Pinto, mestre em Saúde Coletiva e professor na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), que foi secretário de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde e responsável pelo programa no Ministério da Saúde, falou com o Saúde Popular sobre o programa. Confira alguns trechos da conversa:
Saúde Popular – Gostaria que você comentasse o que é possível esperar, qual o desafio hoje para o gestor e a população para ter investimento na Atenção Primária, quando há um congelamento de investimentos, por conta da EC 95? E como o Mais Médicos pode servir ainda de promotor, estruturante do sistema?
Hêider Pinto – O Programa Mais Médicos (PMM) tentou enfrentar inicialmente a falta de médicos no Brasil, de maneira geral, e na Atenção Básica e SUS, em especial. A quantidade de médicos formados a cada ano era menor do que as novas vagas que se abriam no mercado de trabalho. Além de não ter profissionais e o problema só se agravar, esses médicos eram mal distribuídos no território nacional. E, ao contrário de vários países que têm uma situação parecida, o Brasil era um dos mais restritos à possibilidade de médicos não formados no Brasil, sejam estrangeiros ou brasileiros, atuarem aqui.
O Mais Médicos veio então para enfrentar esses problemas, o provimento emergencial não no sentido da duração, mas por enfrentar parte do problema imediatamente. O programa Mais Médicos não enfrenta o problema da falta de profissionais qualificados, em número suficiente nas urgências, nem de neonatologistas nas UTIs [Unidades de Terapia Intensiva], nem de anestesistas em hospitais do interior. Ele enfrentava o problema de médicos na Atenção Básica.
Criava vários mecanismos para poder ampliar a formação de médicos no País, de acordo com a necessidade da população e do SUS, e não só de médicos em nível de graduação, mas também da formação de especialistas, para que o Estado pudesse planejar e regular a formação. Esse é o desenho do Mais Médicos.
Os países que têm sistemas públicos nacionais, normalmente têm uma lógica do Estado regular a formação para o sistema público de saúde. O Brasil tem uma diferença nisso, porque o Estado não regulava nada na formação de profissionais. Pois bem, no que diz respeito ao provimento emergencial, o que aconteceu logo no primeiro ano e meio um programa bem sucedido. Foi um programa de um volume que no mundo inteiro não há: 18.240 médicos [garantidos em unidades básicas] em um ano e meio, respondendo a toda necessidade dos municípios brasileiros.
Os resultados são ótimos. Ampliação do acesso, melhoria dos indicadores de saúde, satisfação da população, satisfação dos gestores. O Programa Mais Médicos foi muito bem avaliado e cada dia mais pesquisas mostram isso. Não só porque os médicos são cubanos ou uruguaios ou portugueses; são mais de 40 países; mas, principalmente, porque esses médicos são especialistas em Medicina de Família e Comunidade. Preparados para atuar com as famílias, atendendo crianças, adolescentes, adultos e idosos, homens e mulheres, e eles gostam de fazer o que estão fazendo.
Depois do golpe, o ministro [da Saúde] Ricardo Barros chegou a prometer para as entidades médicas que desmontaria o Programa Mais Médicos, mas não conseguiu porque o Mais Médicos tem muita força junto aos parlamentares do conjunto dos partidos e junto aos prefeitos. Por exemplo, eu estou aqui em Salvador (BA), onde mais da metade das equipes [Saúde da Família] são do Mais Médicos e o prefeito é liderança nacional do DEM [Democratas]. O Mais Médicos tem um efeito muito importante para os prefeitos dos diversos partidos, o que tornou difícil qualquer movimento de desmonte.
No entanto, eles [governo Temer] vieram fazendo mudanças periféricas. Exemplo: o Mais Médicos estava batendo recordes, nos anos de 2015 e 2016, de atração de [médicos] brasileiros, porque dava um bônus para quem atuasse no programa. Previsto em lei, inclusive, dava 10% a mais no concurso para Residência Médica. Como a corporação médica tem uma percepção, há décadas, de que a Residência é quase que algo privado e que é ela quem decide sobre o modo de formar especialistas, independente do Estado, o Ricardo Barros retirou os 10% [de bônus], reduzindo a atratividade do programa para os médicos brasileiros.
Hoje, há uma dificuldade para atrair e fixar médicos brasileiros maior do que tinha antes. Ao mesmo tempo, o programa foi perdendo alguns profissionais estrangeiros e brasileiros, e o ministério foi colocando essas vagas na geladeira. Ele não substitui os médicos, mas afirma que existe as vagas, mas não tem médicos atuando efetivamente nesses lugares.
As previsões hoje é que, provavelmente, a gente tenha um número de 15% a 20% menor de médicos do que havia em 2016. Mas, o ministério não tem mais esses dados transparentes. Mas sem dúvida alguma, o provimento emergencial é a parte que menos sofreu no Mais Médicos. Os outros dois eixos sofreram muito mais.
SP: O provimento é o primeiro eixo, então qual seria o segundo?
O segundo eixo, que seria o de infraestrutura, que a legislação prevê que até em cinco anos, portanto agora em 2018 – exatamente nesse mês – teria que ter feito uma intervenção no conjunto das unidades básicas de saúde do Brasil, para melhorar a estrutura…
Não é aceitável ter uma unidade básica de saúde que se um paciente está com suspeita de dengue, não é possível colher um exame dele e nem colocá-lo para tomar soro. Aí precisa mandá-lo para uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento] tomar soro. Ou então, ao chegar na unidade básica um paciente com a pressão [arterial] muito alta e dor de cabeça, ao invés de você deixar ele deitado, fazer uma medicação, é preciso mandá-lo para uma UPA ou hospital.
O Mais Médicos deu um salto nisso, porque quando fez com que 40% das equipes de Saúde da Família no Brasil fossem equipes de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade, e aí passou a se somar com enfermeiros, dentistas e os outros profissionais, que já eram especialistas, deu um salto de resolutividade. A gente precisava de uma estrutura que convidasse esses profissionais a trabalhar na atenção básica, que os fixassem, mas também proporcionasse condições de trabalho para eles atenderem mais gente.
Esse eixo tinha muito a ver com o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento]. A parte de construção das unidades básicas de saúde era uma parte do PAC e outra parte são dos recursos da Saúde. Como teve esse brutal contingenciamento [Emenda Constitucional 95] e redução de investimentos, por parte do Ministério da Saúde, praticamente obra hoje é somente por emenda parlamentar. Paralisou o eixo infraestrutura.
Formação destroçada
Mas, sem dúvida alguma, o que foi destroçado é o eixo de formação médica. Esse eixo tinha alguns elementos, quantitativos e qualitativos. Quantitativos: expansão de vagas de medicina, para que em 2026 o Brasil tivesse 2,7 médicos por mil habitantes, sendo que, quando lançou o Mais Médicos, havia apenas 1,8 médico por mil habitantes, o Brasil precisaria expandir 11.500 vagas [na universidade]. Durante o governo Dilma, o Brasil expandiu, se eu não me engano, aproximadamente 7 mil vagas e tinha autorizado a expansão para atingir 8.500 vagas, o que aconteceu na sequência foi, de um lado, o Mendoncinha [José Mendonça Filho], ligado ao setor privado da Educação e dentro do Ministério da Educação, ficou autorizando a expansão de vagas em locais onde não havia necessidade, aproveitando duas brechas na legislação do Mais Médicos.
[Antes de 2016] A regra exigia no edital que a mantenedora propusesse a adesão a uma quantidade de bolsas, adesão ao Fies e ao ProUni etc.
Eles [governo Temer] fizeram um acordo com a corporação médica, onde fizeram uma moratória, se não me engano, de cinco anos, para abertura de escolas. Num País que, claramente, tem falta de médicos e número de vagas de medicina insuficiente.
Não basta formar o médico, tem que formar também o especialista. O programa tinha definido um novo jeito de formar o especialista no Brasil, mais próximo [do modelo] de países que têm sistema universal de saúde. Primeiramente, a pessoa vira um especialista na generalidade, na Medicina de Família e Comunidade, aí ele poderá fazer outras especialidades. A lei do Mais Médicos fazia isso. Até 2018, todos os médicos para se tornarem especialistas em outras áreas – dermato, anestesia, clínica, pediatria – teriam de ser especialistas em Medicina de Família. Isso seria uma virada muito importante na qualidade da medicina do Brasil. Para isso, combinando qualidade com quantidade, teriam que ser abertas vagas para chegar a aproximadamente 16 mil vagas de Medicina de Família, no País.
[O Ministério da Educação] atacou ao proibir a expansão pública de vagas de Residência. As universidades federais estão proibidas de expandir as vagas de Residência. Não tem financiamento do MEC para expandir vagas de Residência. A única que continua acontecendo é aquela financiada pelo Ministério da Saúde, secretarias de Estado, municipais ou por hospitais do SUS.
O governo alterou a legislação do Mais Médicos para tirar do programa a unificação da avaliação da Residência. Pretendia-se fazer na Residência o mesmo sistema que se tem no Enem/Sisu. Isso quebraria boa parte dos feudos relacionados à Residência.
Os três maiores ataques foram na mudança da lei, no sistema de Residência que estava sendo montado, a proibição da expansão das residências e o não-cumprimento da cláusula da legislação que estabelecia até 2018 a universalização da residência e todos os médicos teriam que fazer Medicina de Família e Comunidade.
Já está em curso no Ministério da Educação uma revisão das diretrizes curriculares, para que as diretrizes não apontem para uma formação de médicos voltada ao SUS, para as necessidades da população e mais voltada à Medicina de Família.
Desde o início, aquela resistência da corporação médica ao Mais Médicos não tinha a ver com os médicos cubanos, aquilo ali foi uma escolha tática. Eles escolheram aquilo, como o melhor discurso para gerar comoção social e ganhar apoio popular à causa e contra o governo, que estava sob ataques nas jornadas de junho [2013].(Do Saúde Popular)
2 thoughts on “Médico explica como o planejamento da saúde pública foi destruído após o golpe de 2016”