Em artigo, publicado no site Brasil Debate, mostra que os investimentos públicos em habitação caíram 64% após o golpe parlamentar de 2016.
Essa retirada de recursos ocorreu principalmente na Faixa 1 do programa Minha Casa, Minha Vida. A Faixa 1 abrange a população mais pobre do país, inclusive pessoas em situação de vulnerabilidade social, urbanização de favelas ou mesmo vivendo em áreas de risco. Segundo o IBGE, 11 milhões de pessoas moram em situação subnormal. Veja texto:
Queda nos investimentos públicos faz desandar política habitacional no país
.Por Paula Quental.
Entre 2003 e 2016, o Brasil enfrentou de forma inédita e eficaz seu histórico problema de déficit habitacional, que diz respeito a milhões de famílias residentes em casas muito precárias ou em áreas de risco e ainda às que têm grande parte da renda comprometida com aluguel. Isso foi feito a partir do desenho de uma nova política pública e de dois programas desenvolvidos pelo governo federal com participação de segmentos sociais relacionados à questão da moradia, e cujos recursos estão sendo agora reduzidos, ano a ano. São eles o PAC-UAP, voltado à urbanização de favelas, e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), a partir de 2009, dedicado à construção de novas unidades.
Em apenas oito anos, foram contratados pelo PMCMV em torno de 4,5 milhões de unidades habitacionais, em 96% dos municípios brasileiros. Destas, 3,2 milhões tiveram obras concluídas e entregues, sendo 1,4 milhão destinadas às famílias de menor renda, segundo dados da Consultoria de Orçamento da Câmara dos Deputados. O mais expressivo programa habitacional até então no país tinha sido o BNH (Banco Nacional de Habitação), empresa criada em 1964 e extinta em 1986, que em 20 anos construiu 4,5 milhões de moradias – sem, no entanto, incluir como beneficiária a faixa dos mais pobres, algo novo no país.
Já o PAC-UAP (UAP são as iniciais de urbanização de assentamentos precários), segundo dados do governo federal de 2014, distribuiu em todas as suas fases de desenvolvimento aproximadamente R$ 33 bilhões em urbanização de 3528 empreendimentos, atendendo um universo aproximado de 575 mil famílias. O maior volume de recursos do Programa Minha Casa Minha Vida foi em 2015, quando alcançou R$ 23 bilhões. E o recuo mais forte se deu em 2016, ano do golpe do impeachment, quando seu orçamento ficou em R$ 8,2 bilhões, uma queda de 64% em relação ao ano anterior.
Os R$ 23 bilhões, o auge do PMCMV, corresponderam a 0,15% do PIB, no mesmo período em que as despesas gerais com infraestrutura não ultrapassaram 1% do Produto Interno Bruto (ou 4% do orçamento público federal), revelou a arquiteta Karina Leitão da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU-USP). Com isso, ela chama a atenção para a prioridade que o tema ganhou no país nos últimos anos. Karina é autora, ao lado de Caio Santo Amore, também da FAU-USP, de estudo sobre impactos da austeridade fiscal na provisão de habitação social e na urbanização de favelas, apresentado por ambos em 13 de julho, dentro da série de encontros da Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES) e Brasil Debate para discutir os efeitos das políticas de ajuste fiscal no país, na sede da FES em São Paulo.
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“Esses gastos se mostraram em uma escala inédita, numa realidade de tradicional subfinanciamento de habitação e infraestrutura. Ainda que sejam irrelevantes num país tão desigual como o nosso”, disse Karina.
Ela defende que a política pública habitacional, seja na esfera federal ou nas estaduais e municipais, subsidie massivamente o atendimento da questão habitacional, sobretudo para os setores de mais baixa renda, o que vai de encontro às políticas de austeridade fiscal do governo Temer. “Superar os entraves tradicionais na política habitacional brasileira significa retomar os rumos que se delinearam nos anos 2003-2016, quando o recorde de investimentos no setor dava seus primeiros resultados”, escrevem os autores.
Inovação do Minha Casa Minha Vida
Caio Santo Amore, por sua vez, explicou que o PMCMV é, na verdade, uma grande “marca”, que agrupa vários programas, aos quais cabem algumas críticas, mas também muitos elogios. Um deles, o ineditismo em incluir “uma parcela sempre abandonada da política de habitação”, no caso, os beneficiários agrupados na chamada “Faixa 1”, voltada às famílias de menor renda mensal, de no máximo R$ 1.800, em valores atuais.
Essa inclusão foi possível por meio de volume grande de investimentos diretos de recursos do tesouro, associado aos fundos destinados à habitação desde os anos 1960, que são o FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo), e ainda à criação de instrumentos que deram garantias e lastro ao programa.
Os subsídios, no caso da Faixa 1, chegam a 90% do valor financiado, com parcelas sem juros que variam de acordo com a renda, e que não passam de R$ 270 por um prazo de até 120 meses. A principal fonte de recursos é o Orçamento Geral da União, por meio do FAR (Fundo de Arrendamento Residencial), no caso da produção entregue às empresas de construção, ou do FDS (Fundo de Desenvolvimento Social), quando a produção é realizada em parceria com associações e cooperativas habilitadas pelo Ministério das Cidades.
As demais Faixas, 1,5, 2 e 3, são operadas, sobretudo, com o FGTS, mas também contam com recursos não onerosos do Orçamento da União. A variação nas taxas de juros e no subsídio por unidade ocorre de acordo com a renda das famílias. A Faixa 1,5, voltada às famílias com renda de até R$ 2.300, é mais recente e conta com mais subsídios do que os destinados à Faixa 2, para famílias com renda de até R$ 3.600. A última, a Faixa 3, foi criada para famílias com até R$ 6.500 e conta apenas com subsídios indiretos na forma de juros de até 8,16% ao ano.
“O volume de contratações e de entregas de unidades por faixa indica que o programa foi desenhado para a Faixa 2, apesar do objetivo anunciado de reduzir o déficit habitacional”, afirmou Caio. Isso porque, segundo ele, foi nessa faixa que o PMCMV se mostrou mais eficiente, entregando 1.820.927 unidades até o final de 2016.
“A Faixa 2 mostra, na verdade, a parcela do programa mais aderente aos interesses de mercado. É interessante notar que os cortes orçamentários que afetaram as políticas sociais em geral entre 2014 e 2015 parecem não ter impactado essa Faixa, como ocorreu com as modalidades da Faixa 1. Por exemplo: a modalidade mais importante da Faixa 1 (FAR) teve um volume de 27 milhões de reais em subsídios em 2015, enquanto, na Faixa 2, no mesmo ano, o OGU destinou mais de 880 milhões”, escrevem os autores.
Outra crítica feita pelos setores mais progressistas ao programa é em relação ao encarecimento das terras e do custo de vida nos locais onde ele foi desenvolvido, causando, não raro, também, por sua grandiosidade, a inviabilização de iniciativas locais.
Tragédia das medidas de austeridade
A redução do papel do Estado na execução de políticas sociais e urbanas, como defende o governo empossado após o impeachment de Dilma Rousseff, é exatamente o contrário do que necessita um país como o nosso, na visão dos autores. No caso da habitação, a austeridade tende a ser perigosa, principalmente diante de dados como os divulgados pelo IBGE (considerados conservadores), de que temos 11,4 milhões de pessoas “em assentamentos subnormais que demandam ações de qualificação urbana e ambiental, melhoria habitacional e por vezes de reassentamento”.
O cenário ficou ainda pior com a aprovação da Emenda Constitucional 95/2016, que congelou por 20 anos as despesas/investimentos sociais, a serem corrigidos apenas pelos índices de inflação. “Em um setor crítico como o habitacional, o cumprimento do sexto artigo constitucional que garante a moradia como direito social ensejaria uma postura estatal de permanente aumento dos investimentos para atendimentos de necessidades habitacionais diversas históricas e futuras (sejam elas de provisão, urbanização, melhoria, reforma, locação)”, defendem.
Participaram do debate, para comentar esses dados, Maria Fernanda Caldas, secretária municipal de Política Urbana de Belo Horizonte, ex-diretora de Infraestrutura Social e Urbana da Secretaria do PAC e integrante do Comitê de Acompanhamento do PMCMV, e a professora Luciana Royer, da FAU-USP. Luciana também faz parte, junto com Karina e Caio, da ONG Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais, que dá consultoria para elaboração de políticas públicas de moradias populares.
O estudo de Caio e Karina, enriquecido pela discussão, integrará o segundo volume do documento “Austeridade e Retrocesso” e o livro “Economia Para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil”, que está sendo lançado pela Editora Autonomia Literária durante a 16ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). (Do Brasil Debate)
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