Por Luís Fernando Praga

Admito: não sei bem como iniciar meu ducentésimo terceiro texto publicado nesta querida “Coluna Flexível”, mas é uma crônica sobre admiração e gratidão, portanto, tudo o que vier daqui pra baixo que não for admiração e gratidão deve ser entendido como pano de fundo, detalhes descritivos, floreios e “amarrações” para o desenrolar do raciocínio.

Semana passada, precisei andar de ônibus pra trabalhar.

Andar de ônibus, no meu caso, não é só sentar no coletivo e aguardar que esse chegue ao meu destino. No meu caso, e, creio, no caso da maioria dos que precisam andar de ônibus, o processo envolve uma série de etapas, a se destacarem:

A correria de me arrumar pro trabalho, dar o almoço pra filha, a ração dos bichos, lavar a louça e deixar a casa minimamente habitável; tudo duas horas mais cedo que quem vai de carro.

A caminhada de 1 quilômetro até o ponto, o Sol do meio dia no coco e o empenho em não transpirar pra chegar limpinho e cheirosinho no trampo.

A espera no ponto, o calor e o atraso do busão, cujo único objetivo é implantar no cérebro do usuário de transporte público aquela dúvida: será que já passou?

O ônibus em si, que, no meu horário, nem vem assim tão lotado, mas vem lotado e com o motorista sempre disputando uma prova de Fórmula 1.

Mas foi demais! Eu fiz tudo feliz, porque, detrás daquela realidade temporária, havia a admiração e a gratidão.

As caminhadas? Bem que eu estava precisando. O ônibus cheio de gente? Ah, como é bom ver gente, se entender como gente, estar cercado de gente simples. Ouvir o que gente diz no ônibus é sempre uma aula, uma aula de povo, uma aula de diversidade, uma aula de humor e uma lição de tolerância. Outra aula legal que tem no ônibus lotado é a aula prática de surf, esporte em que venho me empenhando desde a infância, só ainda não encontrei a prancha certa que não me derrube logo no primeiro segundo; mas no ônibus eu arraso!

Realmente eu achei foi bom poder ter tido essa experiência (nem tão rara) novamente.

Obrigado!

O que aconteceu foi que, dias antes, ao sair pro trabalho, encontrei meu carro, que regularmente “dorme” na rua, batido. Era uma escoriação feia no para-choque traseiro esquerdo, uma fratura no mesmo e um afundamento leve na lateral do veículo. Alguém havia batido em meu carro parado e eu logo raciocinei: que bosta!

Como o tempo era escasso para maiores considerações, fiquei só naquele raciocínio.

Dirigi pelo trajeto que me separava da clínica, sempre com aquele “raciocínio” na cabeça, até que reparei num papelzinho tremulante preso ao meu limpador de para-brisa. Que bosta, mais uma propaganda de algo que não me interessa, imaginei. Mas não era um papelzinho de propaganda, era um papel rasgado, escrito a mão. Parei no acostamento, curioso pelo teor do documento.

Era sucinto: “Bati no seu carro” e um número de telefone.

Trabalhei a tarde toda e só de noite, chegando em casa, liguei para o tal número.

Uma mulher, a quem chamarei por “Débora”, atendeu. Em princípio desconfiada quando contei do bilhete, pediu detalhes do meu carro e, admito, devo ter perdido um pouco a paciência por ter que me explicar, mas logo ela se identificou e disse que estava disposta a assumir sua responsabilidade e pagar pelo conserto.

Sei que alguns me veem como ingênuo e até idiota, mas, como gosto de acreditar e acredito em gente, acreditei.

Perguntei como o acidente havia ocorrido e ela confidenciou que tinha um marido hospitalizado com seu segundo infarto e uma filha grávida de oito meses, que também dependia de seus cuidados. Dirigia, absorta em suas atribulações, a levar algo urgente para a filha, quando esse “algo” caiu do banco e ela, ao tentar evitar a queda, foi premiada com seu primeiro e único acidente automobilístico, aos 37 anos de direção, o que me comoveu.

Mantivemos contato, programamos o conserto e, ainda antes de eu levar o veículo à funilaria, ela me enviou o recibo do pagamento referente às peças e serviços: R$900,00

Andei de ônibus 3 dias e já estou com o carro novamente, são e rejuvenescido.

Pois é, ainda tem gente boa neste mundo…

Eu nem conheço a Débora pessoalmente, mas, claro, diante de sua atitude, sou capaz de imaginar que seja uma pessoa boa; no entanto, fico pensando: e as outras pessoas?

O que me dá o direito de julgar o todo de uma pessoa baseado em uma única atitude? E se a Débora fosse um ser humano muito pobre, com o marido infartado e a filha gestante, exigindo cuidados? E se essa Débora hipotética estivesse passando pelas mesmas pressões da vida e, por um segundo de descuido, totalmente compreensível, tivesse batido em meu carro? E se essa Débora pobre também parasse, descesse de seu carro de pobre, avaliasse o estrago e notasse que ela não teria, nem de longe, condições de pagar o conserto do carro daquela pessoa que ela sequer conhecia? E se ela entrasse num conflito íntimo e se decidisse por sair dali sem deixar um bilhetinho no meu para brisa?

Isso me daria o direito de taxar alguma das “Déboras” como uma pessoa ruim?

O que me garante que ela não se esforçaria, se privaria de mais alguma coisa em sua vida de privações, deixaria um bilhetinho igual e pagaria o conserto?

E se houvesse uma criança entre o meu para-choque e o da Débora? E se meu para-coque saísse ileso, mas a criança não e a família da criança também não? E se quem tivesse atropelado a criança, por um ligeiro e compreensível lapso, fosse a Débora com menor poder aquisitivo? E se ela, além de pobre, fosse uma mulher negra e analfabeta?

Não, eu não teria o direito de julgá-la! Seria preconceito e prepotência de minha parte. Eu correria o risco de julgar um ser humano inteirinho por uma única e pontual atitude. Eu correria o risco, caso presumisse baseado em preconceito, desamparado de argumentos e dos demais pormenores, de atribuir uma série de outras imperfeições àquele ser humano de quem eu não sei absolutamente nada. Eu correria o risco de tratar aquele ser humano, cheio de afazeres e demandas, como um bandido, vagabundo e desonesto, e não, eu não quero ser esse tipo de pessoa julgadora e preconceituosa.

Eu não quero ser o tipo de pessoa que, por preconceito e ignorância, deixa de acreditar no ser humano e abre mão de enxergar os lados bons que todos podemos ter, apesar das atitudes menos éticas, e até danosas, a que todos também estamos sujeitos.

Débora é uma pessoa desconhecida e cheia de imperfeições, porque é assim que somos todos nós, humanos e imperfeitos.

Débora é um ser humano que, apesar de todo o estresse envolvido na situação, avaliou que, naquele momento, o melhor a fazer seria não fazer nada além de sua “obrigação”: ela se obrigou a arcar com sua responsabilidade e pagar o conserto do meu carro. A Débora da vida real tinha condições econômicas para tanto, mas, caso ela fosse uma Débora que tivesse que optar entre o conserto do meu carro e a comida na mesa de sua família que passava por necessidades, ela não hesitaria em cuidar do que é prioridade: a vida! Ela não iria arcar com suas responsabilidades para com o carro de algum desconhecido, ela não estaria “errada” por decidir assim e eu não teria o direito de despejar meu julgamento raivoso sobre aquela pessoa.

A Débora não é um personagem fictício, ela existe e foi capaz de uma atitude rara neste mundo em que as coisas passaram a valer mais que as pessoas. A Débora teve respeito aos princípios que norteiam sua vida, teve amor pela pessoa que ela é e, naquele momento, tomou uma atitude que não desrespeitaria seus princípios nem arranharia seu amor próprio, e agindo assim ela também conseguiu demonstrar seu respeito e seu amor ao próximo.

O amor próprio é um sentimento capaz de nos mostrar, muito nitidamente, a real grandeza do amor e a absoluta necessidade social do amor ao próximo. O amor próprio é um sentimento lindo e nobre! O amor próprio é igualmente lindo e desejável em qualquer ser humano, independente de sua classe social, origem, cor da pele, religião ou orientação política. O amor próprio é o principal sentimento capaz de tornar digna a existência humana e ninguém tem o direito de desprezar, diminuir ou podar o amor que alguém deve nutrir por si mesmo.

Entretanto, quando o amor próprio não for capaz de ser empático e despertar o amor ao próximo, isso é só porque ele nunca foi amor, foi só egocentrismo.

Imagino o quanto deve ser difícil alguém cultivar e manter seu amor próprio quando, desde criança, a sociedade ao redor a trata com descaso, indiferença e desprezo; afirma que ela não presta, que é inferior aos demais, que é perigosa, burra ou incapaz.

É esse tipo de julgamento preconceituoso, corriqueiro e para alguns, quase automático hoje em dia, o que nos limita enquanto sociedade e que nos afasta enquanto irmãos humanos.

Atitudes como a de Débora, de tão escassas em nossos tempos, ganham contornos reluzentes, de rara beleza e merecem meu mais amplo reconhecimento e minha mais sincera gratidão.

Sou grato a esse ser humano capaz de atitudes raras e desejo o melhor possível à Débora e sua família! Desejo saúde e felicidades, desejo a mais pronta recuperação a seu esposo, desejo um parto tranquilo à sua filha e desejo que seu(sua) netinho(a) seja um ser humano saudável, livre, feliz e iluminado a ponto de encher a casa de sorrisos, alegrias e ensinamentos!

Serei eternamente grato à Débora, também pelo nascimento deste texto, pela possibilidade de se exaltar a gratidão, pela possibilidade de se exaltar a confiança no ser humano e pela possibilidade de se imaginar e lutar por um mundo com menos preconceitos, onde as pessoas, antes que aprendam a desconfiar e odiar, possam aprender a se amar e tolerar!

Muito obrigado!