O professor de Sociologia na Universidade de Bath do Reino Unido, David Miller (foto), concedeu uma entrevista ao jornal português Público e revelou uma ameaça à produção do conhecimento nas seculares universidades da Europa.
Miller, autor de A Century of Spin: How Public Relations Became the Cutting Edge of Corporate Power (2008), é especialista no estudo do papel central que a comunicação detém nas relações de poder nas sociedades contemporâneas.
Fundamentado em pesquisas, David Miller afirma que os governos dos Estados Unidos, Inglaterra e países ocidentais são os principais divulgadores de ‘fake news’ (notícias falsas). E essas notícias falsas ganham apoio popular, por exemplo, para que esses países entrem em guerra e matem pessoas como aconteceu no Iraque.
David Miller revela que o sistema é sofisticado e tem tentado se contrapor ao conhecimento autônomo das universidades. Os governos dispõem de muitos recursos para pesquisas ao mesmo tempo em que são cortados os recursos de pesquisas nas universidades.
Ele conta que no Reino Unido existe um centro de investigação (The Centre for Research on Emerging Security Threats) que foi criado através da injeção de R$ 19,5 milhões proveniente dos serviços de informação e secretos britânicos. “O problema potencial deste tipo de financiamento é que enviesa os temas sobre os quais os acadêmicos se debruçam, mas ainda mais importante é o secretismo que lhe está associado”, comenta. Veja trecho da entrevista:
Guerra do Iraque
‘A guerra do Iraque foi “vendida” numa base falsa: a de que Saddam Hussein era uma ameaça para o Ocidente, que tinha armas químicas ou estava apostado em tentar desenvolvê-las. O logro foi multidimensional, da alegação de que o sequestrador do 11 de Setembro, Mohammed Atta, se tinha encontrado com membros dos serviços secretos iraquianos, passando pela alegada compra de urânio ao Níger e as fotografias de laboratórios químicos móveis até ao “apimentar” do dossier do governo britânico. Envolveu múltiplos serviços de informação e espionagem, todos eles dedicados a tentar legitimar o que de outra forma seria visto como aquilo que o procurador-geral norte-americano no tribunal de Nuremberga, Robert H. Jackson (1892-1954), descreveu como “o supremo crime internacional, que se distingue de outros crimes internacionais na medida em que contém em si o mal acumulado como um todo”.
Guerra na Líbia
Isto é particularmente importante porque a lição retirada por aqueles então no poder foi de que o engodo era um instrumento político útil. Por isso, quando se tratou da legitimação da intervenção desastrosa na Líbia, em 2011, o público britânico foi ludibriado sobre a dimensão da ameaça às populações civis. Um relatório comprometedor de um comité parlamentar sobre o tema acabou de facto com a carreira parlamentar do primeiro-ministro David Cameron em 2016. Como é descrito por uma fonte, o comitê “concluiu que a ação “não se baseou em informação fidedigna”; que a ameaça para os civis foi exagerada; e que a oposição a Kadhafi continha “um elemento islamita significativo”.
Fake News (notícia falsa)
As fake news – ou seja, a prática de inventar notícias ou disfarçar as suas fontes – não são novas. Escrevi sobre isso durante algum tempo. Por exemplo, em 2006 escrevi uma peça no Guardian: “The propaganda we pass off as news around the world” sobre um serviço noticioso televisivo financiado pelo governo britânico. Vale a pena notar que aqueles que providenciaram fake news foram governos ocidentais e que tanto o governo britânico como norte-americano continuam hoje a disseminar material que é “fake”, tanto no sentido de que é enganador ou no sentido de que o papel dos estados na criação de organizações de informação ou no movimento “de base” que aparentemente está a fornecer a história é disfarçado.
Um exemplo é a organização pelos direitos das mulheres Inspire, cuja campanha #MakingAStand foi revelada em documentos que acabaram por se tornar públicos. É um “produto” da unidade de propaganda do Home Office do Governo.
Num certo sentido as fake news são realmente novas. Se considerarmos o termo como um dispositivo retórico despojado de qualquer conteúdo real, que é usado para atacar a esquerda, os media alternativos e encorajar a russofobia, então vemos algo de novo. Fake news – a real prática do engano – são dominadas pelas actividades dos governos ocidentais (especialmente dos EUA e do Reino Unido) e pelas multinacionais. O uso retórico do termo “fake news” é em grande medida mobilizado por facções da elite na tentativa de aumentar o seu poder e influência, para desferir ataques contra a esquerda e favorecer fins geopolíticos particulares, incluindo a preocupante russofobia que vemos hoje em todo o lado. É assim que temos a confecção bizarra do “Russiagate”, um escândalo que provavelmente ficará registado como a menos significativa história de corrupção e maquinação política na história norte-americana.’ (Ver texto integral)