.Por Allan Yzumizawa.
A artista visual Cecília Stelini conta que sua primeira lembrança em relação à arte foi um desenho que havia feito, ainda pequena de uma pétala de rosa vermelha na parede da casa em que vivia. Depois passou para as cópias de desenhos de gibis, afirmando já com sete anos de idade de que gostaria de ser pintora no futuro.
Nos anos de 1970 se forma em artes plásticas pela FAAP e monta um ateliê de cerâmica no bairro Pompeia, em São Paulo, com sua amiga e artista Raquel Valente. Na entrevista com o curador Allan Yzumizawa, Cecília conta o seu percurso artístico até a linguagem da performance, território que investiga, produz e articula na cidade de Campinas com demais países da América Latina e da Europa. A artista, que se viu trabalhando com imagens de coração, percebeu que seu próprio coração precisava de intervenção e filmou a própria cirurgia cardíaca. A arte invadiu seu corpo.
Allan Yzumizawa: Logo que você se formou na FAAP, montou seu ateliê de cerâmica. O que te chamava atenção na cerâmica?
Cecília Stelini: A tridimensionalidade e o contato com o objeto. Antes da faculdade, eu era mais bidimensional, então quando tive contato com a cerâmica, me encantei. Fui influenciada através das aulas de escultura com o Vlavianos, que é uma referencia na escultura brasileira. As aulas eram com muitos materiais: ferro, solda, acrílico, madeira… então me envolvi muito mais com o tridimensional e que consequentemente me encaminhou para a cerâmica cujas aulas eram ministradas pelo uruguaio Juan Godiño. Depois me casei e vim pra Campinas. Meu marido era daqui, então montei um ateliê no fundo de casa até criar meus filhos. Tinha vários alunos… fiquei nessa até 1984.
AY: Nessa época a sua produção era exclusivamente focada na cerâmica, ou você produzia pinturas, desenhos também?
CS: Não… muito pouco. Um pouco de desenho. Nessa época eram mais desenhos, cerâmicas e esculturas. Sempre gostei do lado mais experimental. Fiz muitos cursos sobre técnica na argila, mas na minha produção, eu gostava de experimentar mais. Fiz varias exposições com essas peças em São Paulo, em Campinas e outras cidades – nem tô lembrando agora porque foi na década de 70 para 80.
AY: O que fez você parar de produzir cerâmica?
CS: Em 1985 meu pai comprou uma casa e montei um espaço que era um ateliê de cerâmica com a Fátima França, um escritório de arquitetura com duas arquitetas recém formadas, Bárbara Corsetti e Lilian Hayashi e uma galeria. Nós 4 conduzíamos a galeria. Então entramos em contato com muitos artistas tanto daqui como das outras cidades. A proposta da galeria era ser uma galeria de arte contemporânea. Acho que em quase todas as exposições, sempre tinha no mínimo uma instalação. Em geral eram sempre dois artistas que entravam em contato, e nunca eram dois da mesma linguagem, sempre um de pintura e outro da escultura, etc. A maioria das vezes, nem se conheciam. Não existia essa coisa de coletivo, eu que gostava de trabalhar coletivamente, era sempre um peixe fora d’ água. Cheguei a trabalhar numa cooperativa de cerâmica, e era uma dificuldade porque as ceramistas diziam: essa receita de esmalte não vou passar porque é minha… e eu logo de início, com Raquel e Fátima, a gente dividia tudo, passava receita, endereço dos lugares que vendiam os produtos, tudo… e as pessoas ficavam zangadas com isso. (risos) Tem que passar pra todo mundo! Eu sempre circulei por vários grupos, mas sempre tive uma dificuldade por causa dessa minha postura. Por isso que nos anos 2000, quando comecei a fazer performance, eu achei o meu grupo, por que se vive e se pratica muito mais a ideia do coletivo (risos).
AY: E as exposições aconteciam todo mês? Como que era o público e a circulação de pessoas nessas mostras?
CS: Era difícil. Nessa época a gente não tinha uma efervescência da época dos salões de arte contemporânea de Campinas. Ficamos com a galeria durante dois anos. A gente tinha dificuldade de comercializar qualquer coisa, pois como trabalhávamos com obras mais experimentais, era muito complicado vender. Na época as pessoas de Campinas iam comprar obras de arte em São Paulo, não compravam aqui. A gente tinha um público formado mais por artistas. Chamava-se Galeria Gílio, que encerrou as atividades depois de 2 anos e meio. O pessoal da arquitetura parou em 1990 e eu continuei com o ateliê de cerâmica. Tínhamos mais de 40 alunos…
Em 1989 retomei minha ida para São Paulo, para voltar a estudar. A cerâmica já tinha dado tudo que podia, e eu queria algo novo. Eu lembrava que tinha participado da 6ª Jovem Arte Contemporânea (JAC) , organizada por Walter Zanini – que também foi meu professor na FAAP – onde nós havíamos feito um happening em que tinha gostado muito. Foi uma JAC referência no Brasil, e eu pensava muito naquele tipo de trabalho, o que me fez retornar nisso. Fui fazer um curso no espaço cultural Yázigi ali na 9 de julho, em São Paulo. Fui junto com outros ceramistas. Nós tínhamos feito uma exposição em Buenos Aires, e uma das integrantes do grupo soube desse curso e que a artista chamada Lúcia Py dava aula e fazia os acompanhamentos.
Durante as aulas, começamos a produzir outras coisas para além da cerâmica. Saía muito objeto e instalação dentro do grupo. Migrei pro vidro, para o cimento, para o ferro até que cheguei no tecido, e com ele que me encontrei. Em 1997 fiz um trabalho com carcaças que era em tecido com resina. O molde foi feito nas costas de uma pessoa, então quando você chegava perto você percebia que era parte de uma carcaça de ser humano. Com esses objetos, participei de uma coletiva no MACC. Essas peças ficavam suspensas e somente uma no chão, o nome do trabalho era “Entre Eros e Tanathos”. A partir dessa instalação, é que meu trabalho começou a adquirir um outro percurso. Eu consegui refletir mais num conceito, ter consciência à respeito do questionamento, entender melhor sobre o que eu queria falar. Ele foi um marco na minha produção.
AY: O que você queria falar nessa época?
CS: Era, e continua sendo, sobre o ciclo da vida. Nascer, morrer, renascer e como o amor está envolvido em tudo isso. Então a questão do amor nas suas várias formas e do não-amor também, a falta dele. Entre 1997 e 2003, fizemos com esse grupo várias exposições fora do país também, em Paris, Berlim, Nova Iorque.
AY: Aqui em Campinas era mais difícil de expor?
CS: Durante um grande período, ninguém sabia o que eu estava fazendo aqui em Campinas. Como ficava mais por São Paulo, tinha esse gap entre obra e público.
AY: E quando você foi pra performance?
CS: Foi com esse grupo. A ideia era que criássemos um personagem que se relacionasse com a sua poética, ou com a instalação que estávamos desenvolvendo. Depois de pronto, a gente tinha que performar com ele. Então as minhas ações tinham um pouco a ver com aquelas figuras escultóricas que ficam paradas nas ruas simulando uma estátua, com uma movimentação contida, e que se vestem com alguns adereços. Foi assim que eu construí esse primeiro personagem, fizemos duas vezes essa performance em Campinas. A partir desse momento, eu me encantei, me senti super bem fazendo e a própria construção do personagem. Parece que os objetos passaram a fazer mais sentido.
A partir daí, comecei a construir outros personagens, uns mais masculinos, outros mais femininos, andrógenos, de acordo com as minhas produções – era como se eu corporificasse as minhas produções artísticas. Até que em 2001 eu tive oportunidade de fazer um projeto solo de performance e também um trabalho que era a construção de um tapete com serragem, pétalas de flores e materiais orgânicos que remetia as produções de tapetes durante o Corpus Christi. Eu sempre me lembrei desses acontecimentos, tenho até uma foto quando pequena na frente da igreja, e na frente do tapete com o desenho de um coração.
Essa foto sempre me encantou. Então, a Samantha Moreira me convidou para fazer uma exposição numa galeria do Centro de Convivência, e fiz uma ação sobre cada tapete. Colaboraram comigo nesta performance a artista Adriana da Conceição e minha filha Mariana. Aí foi o que confirmou minha permanência na performance. Quem fez o registro foi o Kid (Guilherme Fogagnolli) que trabalhava com a Samantha, ele tinha 22 anos na época. Foi meu primeiro registro de performance. Nessas ações já tinham o elemento do peixe e do coração, símbolos recorrentes na minha produção. Curiosamente esses dois elementos chegaram até mim através do vidro modelado e vidro soprado. Não fui eu que os selecionei, eles chegaram. O coração foi em 1997, foi junto com o projeto “Entre Eros e Thanatos”.
AY: O peixe veio através de uma forma no vidro?
CS: Sim, apareceu na forma aleatória de um vidro, e que até era azul. O coração foi mais interessante. Nessa época, estava trabalhando também com um bicho, era uma espécie de pássaro, uma figura orgânica que foi construída com argila e a partir daí cortei e fragmentei a cabeça dessa figura, que posteriormente me serviu de moldes em vidro soprado. Na época eu fui para os EUA (Pilchuk) fazer um curso de vidro soprado e quando voltei para Campinas eu não sabia se ia dar continuidade nesse trabalho porque aqui não tinha ninguém que poderia oferecer a estrutura, não tinha nem fábrica de vidro soprado.
Como eu não tinha condição de montar essa estrutura, comecei a procurar pessoas que pudessem me ajudar. Encontrei um rapaz que estava fazendo um mestrado em física que investigava as cores nos vidros, as reações químicas em relação as cores, etc. O pai dele tinha uma construtora em Vitória então a família era toda de engenheiros, só ele que era físico, Rogério era o nome dele. Aí ele construiu um forno para vidro e montou um ateliê de vidro soprado e como ele soube que eu tinha ido para os EUA fazer o curso, me chamou para o ateliê. Aí ele fez uma cor bordô pra mim, eu que havia pedido pra ele. Fiz os moldes para poder soprar o vidro com a cabeça desse bicho.
A gente foi fazendo esse processo e demorou dias, era muito demorado. E enquanto íamos pondo no chão, ia juntando uma quantidade considerável, 150 objetos, então começamos a observar que aquilo parecia um monte de coração de boi, porque parecia mesmo! Logo me remeti as carcaças, que nada mais eram do que as cabeças do bichos, e ficou evidente que aquilo para mim era o coração daquela criatura. Foi aí que apareceu o coração.
AY: E esses elementos que apareceram pra você se relacionam de uma maneira – simbolicamente – com a sua vida? Talvez aí podemos observar a quebra da barreira entre arte e vida na sua produção?
CS: Além de ter a simbiose entre arte e vida eu passei a ler a simbologia, e a tentar entender também conceitualmente o que o peixe e o coração poderiam significar, e fui encontrando conexões com o meu universo, com a minha história, com a minha poética. O peixe foi em 1991 e o coração em 1997, tem uma distância. Mas cada vez foi fechando mais… eu pude também ao mesmo tempo ir tomando consciência do que queria falar e como, pra poder me administrar também. Se eu quero ir mais para o sagrado ou para o profano.
AY: Como você prosseguiu na performance aqui em Campinas? Tinha espaço?
CS: O Ateliê Aberto era um lugar que abarcava essas produções. Fiz ações em Campinas com curadoria da Sá (Samantha Moreira), no Museu de Arte Contemporânea de Americana, que na época era dirigido pelo Fábio Lucchiari, então ele me chamou para participar de um projeto de performance que foi muito interessante, pra você ter uma ideia, a Márcia X participou desse projeto e eu pude vê-la fazendo uma ação que foi maravilhosa, foi em 2002. Aí em 2003 eu fiz uma outra no Ateliê Aberto, que foi um processo de ações que durou até 2005, a última gerou uma exposição na CPFL(2005) com curadoria do Agnaldo Farias e coordenação da Samantha e da Sylvia Furegatti.
AY: Então tinha uma possibilidade de performance aqui na cidade de Campinas…
CS: Sim, tinha. Aquele “menino”, artista performer… o Felipe Espíndola e a Sara Pananby. Tinham várias pessoas, eles estavam começando na época também. Comecei a trabalhar mais coletivamente na produção dos tapetes. Fiquei até 2005 com o grupo de São Paulo, e tive que sair porque a curadora tinha uma certa resistência com a performance. A partir desse momento senti que já podia caminhar e de que não precisava de uma orientação tão próxima e sistemática.
AY: E quando você começou a participar de festivais de performance?
CS: Então, quem me introduziu no universo dos festivais de performance foi o José Roberto Sechi. Em 2009 eu tinha feito uma cirurgia cardíaca, e em 2010 me convidaram para fazer uma performance pelo grupo Aluga-se. Então acabei encontrando o Sechi por lá pois ele também foi convidado para performar, e nesse dia conversamos e eu falei sobre a minha vontade de trabalhar fora do Brasil. Então, ele me falou que estava indo para Lima, que de lá, iria pra Santa Cruz na Bolívia e depois descer para o Chile, finalizando em Buenos Aires num festival. Fiquei surpresa e disse que estava muito interessada em viajar também pois tinha acabado de fazer a cirurgia e estava um pouco desanimada.
AY: Mas o que foi a cirurgia?
CS: Tive que colocar uma prótese de válvula na aorta. Eu fiquei muito deprimida quando soube que teria que operar. Comecei a ficar cansada, fui no médico e ele falou que eu teria que operar. Estava num processo complicado pois estava me separando do meu marido, e eu gostaria de separar antes da cirurgia mas não deu tempo… então foi uma época em que estava muito mal, muito fragilizada até o momento que pensei: eu faço performance, e o coração é um dos meus elementos de trabalho… foi aí que tive a ideia de filmar a minha cirurgia.
AY: Pois é, eu vi o vídeo! Aliás, tentei ver o vídeo… (risos)
CS: Foi aí que me animei, pois não iria fazer uma cirurgia, mas iria fazer uma performance. Foi difícil conseguir alguém para filmar, mas aí meu filho Rafael – ele que tem um olho maravilhoso para fotografia e além disso é médico – pode entrar dentro da sala e filmar. Ficou dentro da sala durante quatro horas e meia com a câmera na mão. A gente não conseguia por um tripé, então ficou atrás de mim com a câmera. Eu fiz uma direção antes: “Rafael, não filma os equipamentos, pegue as mãos dos médicos…” (risos)
E voltando para o Sechi, depois de ouvir meu comentário, ele falou que poderia conversar com a Gabi Alonso e Nelda Ramos que organizavam o ZONADEARTEACCIÓN. Eu aceitei, e elas toparam a minha participação. A mesma coisa que eu tinha feito no Aluga-se, eu repeti na Centro Cultural de España em Buenos Aires. Só que eu não sabia como funcionava o festival de performance, e como eu estava fragilizada, fiquei só cinco dias, então não consegui interagir muito com os outros artistas participantes, mas adorei. A partir daí, o pessoal começou a me chamar, e eu chamei depois a Gabi e a Nelda aqui em Campinas. E aí a coisa foi indo… por que você vai nos festivais, você encontra o pessoal. E muito desses artistas são gestores de espaços independentes em seus respectivos países, então a galera vai te chamando…
AY: O legal que é uma rede, um espaço que fica a todo momento transitando. E Campinas virou um ponto de encontro.
CS: Isso, exato! Porque aí eu organizei o Atos em Ações em 2013, e chamei essas pessoas para participar. Na realidade, a gente quer se encontrar e trabalhar junto. Por exemplo o Fausto Gracia. A primeira vez que o vi, foi na internet. A Lea Moraes lá de Limeira que me mostrou o link falando que o trabalho dele tinha a ver com o meu. Aí eu olhei e achei maravilhoso. Entrei em contato com ele no Facebook, mandei uma mensagem. A partir daí ficamos em contato pela internet. Em 2012 quando fui novamente para o ZONADEARTEACCIÓN, encontrei com ele lá. Foi assim que nos conhecemos.
AY: Para finalizar, gostaria de perguntar sobre sua perspectiva. O que você projeta para o futuro?
CS: Algo que já venho fazendo. Arte sem compartilhar não faz sentido para mim. Pude entender que o meu trabalho pessoal tem um aspecto de compartilhamento relacional defendido por Bourriaud em seu livro Estética Relacional. Para além disso, gosto também dessa organização de convivência com outros artistas, a abertura do meu espaço para outros artistas para que haja essa troca, essa coletividade e compartilhamento. Isso é o mais importante pra mim, é o que faz sentido.
Veja performance de Cecília Stelini