.Por Ricardo Corrêa.
Nós não podemos pensar em nos unirmos com os outros até que sejamos primeiro unidos entre nós. (Malcolm X)
Uma das características perversas da classe dominante brasileira é a difusão do pensamento de que os negros são os responsáveis pela situação marginal em que a maioria se encontra e, por essa razão, qualquer medida oriunda do Estado para alterar esse aspecto não tem justificativa aceitável. Discordando desse pensamento, assumo a lógica do sociólogo Pierre Bourdieu ao esclarecer que análises sociológicas precisam emergir de uma visão holística, pois nada que não seja imaginário existe sem um complexo de relações.
Sendo assim, algumas perguntas são inevitáveis: o período escravista foi somente um detalhe na história do Brasil? Quiçá, uma obra do acaso sem efeitos posteriores?
Para avançarmos neste debate, pretendo provocar reflexões acerca das cotas raciais como elementos que buscam corrigir as distorções embrionárias na história dos afro-brasileiros, mas que esbarram em obstáculos que estão inseridos no próprio grupo étnico, em outros momentos, colocados pela classe dominante que objetivam conservar os próprios privilégios.
O racismo brasileiro sempre se reinventou na tentativa de manter o monopólio sobre os corpos negros, nos quais os grilhões e os açoites não seriam mais aceitos depois da abolição da escravidão. Os contrários a essa violência acreditavam que com a libertação dos homens escravizados o racismo seria eliminado, mas não passou de uma utopia. Num dado momento, o racismo usou de argumentos científicos que propunham desde a inimputabilidade dos negros − sob o argumento de uma suposta alteração na formação do crânio − até a extinção da raça com a miscigenação racial.
Atualmente, observamos o racismo estrutural que produz a naturalização das hierarquias raciais onde o negro está alocado na inferioridade; vemos, também, o racismo institucional limitando a ascensão econômica e política dos negros. Na síntese de Stokely Carmichael e Charles Hamilton – definidores do termo racismo institucional – esse racismo ultrapassa as ações individuais e as questões ideológicas, contudo é determinante nas relações sociais.
Diante disso, independente das bases teóricas distintas, nota-se que o racismo tem cumprido com “excelência” o papel de facilitador da classe dominante na exploração da população negra.
Com o fim de combater essas diferentes formas de racismo, os movimentos negros elegeram as ações afirmativas, em especial as cotas raciais, como instrumentos necessários para fortalecerem a representatividade dos afro-brasileiros, derrubando todo modelo de marginalização e provendo a igualdade material entre brancos e negros.
É notória a escassa participação dos negros nas instituições públicas como estudantes ou atuando como servidores; dificilmente alguém que desconhecesse a história do país acreditaria que mais da metade da população brasileira é formada por negros. O inexpressivo poder aquisitivo e a ausência de uma educação de qualidade que possa prepará-los para vestibulares, e concursos públicos, tornaram difícil o acesso àquelas instituições. São essas questões que evidenciam a urgência do Estado em lançar mão de instrumentos universais para alcançar a igualdade na sociedade, contrário disso, podemos considerar o preâmbulo da Constituição Federal, de 1988, uma mera alegoria.
Ademais, embora os argumentos em defesa das cotas raciais sejam fundamentados, existem críticas contra a sua aplicação, como por exemplo: a subestimação da capacidade intelectual dos negros. Entretanto, observo que a apreensão intelectual que resulta em desempenho satisfatório do sujeito cognoscente, depende muito mais de estímulos externos do que do “voluntarismo” biológico.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a constitucionalidade do uso das cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas, mas a sua aplicação ainda necessita de aprimoramento devida às ocorrências de fraudes: brancos estão se autodeclarando negros, desta maneira retirando as vagas de quem realmente tem direito.
No entanto, destaco alguns sujeitos inseridos no processo de reivindicação de vagas que merecem uma particular atenção: o negro descompromissado com a demanda dos afro-brasileiros.
A miscigenação racial no Brasil, iniciada com o estupro sistemático das mulheres escravizadas pelos senhores de escravos, resultou em negros com fenótipos distintos dentro do próprio grupo – traços faciais, cor da pele, cabelos, entre outros −, claro que os escravos oriundos de outras regiões também contribuíram para essas diferenças.
Nesse sentido, novas subjetividades passaram a ser construídas nos indivíduos, imbuídas no tratamento dispensado que levam em consideração a tonalidade de pele; quanto mais escura, maior o preconceito. Caso usemos como aporte os estudos do sociólogo Oracy Nogueira, associaremos esse tratamento ao que ele chamou de preconceito de marca, predominante no Brasil, e que se caracteriza a um tipo de preconceito que considera apenas os aspectos físicos dos indivíduos.
Essas questões lembram-me da obra “Pele negra, máscaras brancas”, 1963, do psiquiatra Frantz Fanon. Nesse trabalho, Fanon menciona sobre a existência prática que coloca o negro como o elo entre o macaco e o homem. Homem branco, claro.
Esse preconceito de marca produz sentimentos nos sujeitos de não pertencimento a descendência africana, porém, fomenta a defesa dos valores da branquitude. E, quando não criticam, enxergam nas cotas raciais uma oportunidade de conquistar um espaço que os aproximem do “ser branco” e não como um reparo às injustiças que colocam os negros como suas principais vítimas.
Nós, negros, precisamos de indivíduos conscientes politicamente e sabedores de que a luta em defesa dos nossos direitos não tem caráter individual, mas coletivo. É inadmissível a assunção de uma identidade somente para conseguir o benefício das cotas raciais. A autodeclaração deve ser carregada de consciência de classe e reivindicada por negros cujos fenótipos não os excluem da sanha dos racistas. Essas características farão dos futuros advogados, engenheiros, professores universitários, médicos, promotores, juristas, entre outras funções na sociedade, afro-brasileiros defensores da ampliação daquilo que contribuiu para colocá-los num patamar superior, a despeito da vontade contrária da classe dominante.
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: < https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88 _Livro_EC91_2016.pdf>. Acesso em 23/12/2017.
Carone, I. & Bento, M. A. da S. (org.) (2002). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes.
DAFLON, V. T; FERES J., J; CAMPOS, L. A. “Ações afirmativas raciais no ensino superior público brasileiro: um panorama analítico”. In Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas. Impresso). Rio de Janeiro, 2013.
EBC. Agência Brasil. Negros são 17% dos mais ricos e três quartos da população mais pobre. Brasília. Disponível em:<http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/201 6-12/ibge-negros-sao-17-dos-mais-ricos-e-tres-quartos-da-populacao-mais-pobre>. Acesso em: 15 nov. 2017
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Bahia: Editora Edufba, 2008.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
Nogueira, Oracy. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem: sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre relações raciais no Brasil. Tempo soc., Jun 2007, vol.19, no.1, p.287-308. ISSN 0103-2070
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