.Por Guilherme Boneto.
Encontro-me neste exato momento em que escrevo rodeado por três enormes livros, além do Vade Mecum, do meu computador e, confesso, de um celular a apitar com certa frequência. Dedico o meu fim-de-semana a estudar alguns conceitos de Direito Civil, tenho ainda alguns trabalhos a desenvolver e pretendo ler ainda hoje um artigo científico cujo conteúdo me interessa.
Preciso fazer isso durante os dois dias do fim-de-semana porque, aos 26, decidi ingressar em segunda graduação depois de me formar em Jornalismo há pouco mais de dois anos. Desta vez o meu desafio é com o Direito, e a carga de leitura se mostra extenuante a uma pessoa que, como eu, trabalha em tempo integral e considera imprescindível conciliar a rotina com os exercícios físicos uma vez ao dia. Portanto, o sábado se mostra um oásis semanal de horas “livres” para revisar um conteúdo que, se atrasado estiver, pode ser impossível de ser recuperado em tempo hábil.
Faço uma pausa em meus estudos para escrever este artigo, sim, e meu objetivo aqui não é me considerar diferente de ninguém. Muitos de meus colegas de sala fazem neste momento exatamente o mesmo, bem como milhões de outros estudantes país afora, graduandos ou não, que precisam trabalhar para pagar os próprios estudos. No Brasil, fazê-lo não é motivo de destaque para ninguém; é nada mais do que um mérito de ordem pessoal.
Não considero um sacrifício debruçar-me sobre a doutrina e o Código Civil – o que faço neste momento – porque o Direito desperta um mim uma paixão arrebatadora. O que me motiva a escrever nesta ensolarada tarde é o incômodo que me causam os textos de pessoas que exigem que eu abandone tudo e vá conhecer o mundo – e eu acabo de me deparar com um deles, particularmente petulante ao me classificar como um “acomodado” por “não testar novas experiências”, como se não fosse suficiente a faculdade de Direito.
É fácil pensar assim quando se tem patrocínio de qualquer ordem, especialmente a parental. Mas veja que interessante é a vida: o dia 5 se aproxima, e com ele vem uma série de obrigações que nos cobra a assumir a mera existência e que eu, até hoje, tenho honrado religiosamente. Para poder arcar em dia com as minhas despesas, preciso trabalhar – e tenho a grandiosa sorte de fazer o que gosto. Para mim, a única maneira de sair dessa tal zona de conforto é utilizar-me do único horário de lazer e descanso que me estaria disponível para voltar a estudar, encarando desta feita um curso de cinco anos – completar-se-ão nove anos de graduações ao fim dessa jornada, e eu não pretendo parar por aí. Num país em que milhões de pessoas gostariam de poder estudar e simplesmente não conseguem, sinto-me um homem privilegiado, a despeito de todos os esforços que empreendo para chegar até aqui. Tem gente que esforça mais que eu e não consegue.
Com a vida que levo, não é possível que eu compre um Fusca e nele viaje até a Califórnia, nem que eu faça render mil reais para viajar de mochilão à Europa e ficar em casa de pessoas que se disponham a me acolher. Não me é facultado largar tudo e ir-me embora assim, da maneira colorida com que o Instagram retrata. Tornou-se moda postar as imagens de pessoas com óculos de sol e braços abertos, a esfregar na nossa cara uma realidade paralela que não conseguimos alcançar. Talvez o sucesso dessa gente esteja longe dos filtros das redes sociais. Talvez seja preciso que trabalhem em pequenos empregos, que juntem economias para a próxima viagem, ou ainda que passem por dificuldades que simplesmente não nos relatam. O fato é que a imensa maioria das pessoas não pode fazer o mesmo – e não há nisso absolutamente nada de errado.
Também não há nada de errado em ter dinheiro para viajar o mundo. Viajar é uma paixão para mim – o faço sempre que me é possível. Quem tem oportunidade de embarcar numa aventura dessa natureza tem mais é que fazer isso, porque talvez a vida não permita duas vezes e a riqueza desse aprendizado, tenho certeza, é única. Só não vale chamar de “acomodado” quem não pode – ou mesmo não quer – fazer o mesmo. Portanto, a próxima vez que você vir um texto enorme desses que te sugerem abandonar tudo, ilustrado com uma maravilhosa fotografia de uma praia iluminada pelo sol de verão, não se sinta o pior dos mortais por não poder repetir a façanha. Eu mesmo acabei de cruzar com um desses – longe de ignorar o artigo, escrevi este meu para refutar a acomodação de que me acusaram. Se for ver bem, eu neste momento não estou bem acomodado sequer na cadeira. E agora, retornarei aos meus estudos de Direito Civil. Afinal, o tempo urge a segunda-feira vem aí.
Um detalhe que torna essa excrescência ainda mais perversa é que as escolas públicas, alvo dessa campanha sórdida, foram sucateadas premeditadamente, de sorte que somente as classes mais carentes colocam seus filhos nelas. As privadas já são do partido da classe dominante. Assim o objetivo sub-reptício é esterilizar intelectualmente a mão-de-obra precarizada e oprimida, domesticá-los e eliminar uma possível indignação, revolta.
Que essa gente vil vá para os quintos do inferno!