Seu dedo apertou o gatilho: o sonho acabou
Com ela morreu seus sonhos e a esperança de diversas outras crianças, que experimentaram hoje o ódio e o desejo de vingança pela covardia sofrida. Todo trabalho de 6 anos do colégio na comunidade, todo o trabalho de 3 anos da equipe de Educação Física e Direção, toda credibilidade que tinham, morreram ali.
Eu sairia as 16:20, estava com a turma de 6 Ano. Ouvi três tiros de pistola. Coloquei todos sentados e em silêncio em local seguro. Ouvi mais rajadas de fuzil. Gritos. Controlando a turma, boatos vinham, diziam: menina baleada. Disse a turma que iria averiguar e eles esperassem. Concordaram. Um funcionário, pai de aluna, que veio três vezes a turma pra ver a filha e pedir que não saísse dali, estava no corredor. Perguntei a ele o que realmente havia acontecido, ele pegou no meu braço e disse: quer ver o que aconteceu? Olhe ali embaixo. Vi o corpo e a poça de sangue. Morta. Voltei a turma. Confirmei o boato. Vi ainda na quadra o professor de E.F. com os outros alunos abrigados e abaixados. Na primeira pausa do tiroteio, que não acabou durante toda a tarde e noite, os alunos foram liberados para casa. Mas a troca de tiros, não parou. Alunos, pais, familiares, curiosos, vizinhos e bandidos queriam ver o corpo, entrar na escola. Uma multidão que nunca vi ali, e sempre se renovava. Uma multidão. Muita dor, revolta, desespero, ajuda… gás de pimenta, coquetel molotov, tiros, fogos, gritos…muitos gritos. Muita gente desesperada, muita gente desmaiando. O inferno. Fogo na rua, barricadas, ônibus e carros queimados. Tiros. Execução sumária. Revolta. Justa revolta. E nós, professores e funcionários, ali. Muito ódio. Justo ódio. E ela, morta.
Esta política de “combate às drogas”, mata. Morre policial, morre traficante, morre inocente. Lucrando com ela, uma minoria de Políticos e “Empresários” da “boa sociedade”, que fornecem armas e drogas para os dois lados. Vendem a ideia de que vivemos em uma “guerra”, para atuarem livremente. Encontram eco nos discursos conservadores que dizem que “bandido bom é bandido morto”, que “favelado é criminoso”, que “direitos humanos só servem pra proteger bandidos”, que a “polícia deve ser justiceira contra bandidos”… Se você defende isso, parabéns!, seu desejo foi realizado: seu dedo ajudou a puxar o gatilho do fuzil que matou Maria. Ela virará estatística: mais uma preta, pobre e favelada que morreu. Junto com ela o humano deste ser. Nesta lógica do olho por olho, ficamos todos cegos.
O ódio classista, o ódio contra a favela, o ódio contra o pobre, voltará. A favela dará o retorno. A indiferença, o descaso, o descompromisso com ela, terá volta. Não terá controle. Não há paz sem justiça social. Não há sossego possível, com esta omissão estrutural e esta política de extermínio. Ou mudamos tudo, ou nada mudará.
A família gritava: “a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro matou minha irmã “; “a favelada que estuda, tá aqui morta, enquanto isso, aquela criminosa foi solta pra cuidar do filho dela”; “queria ver se fosse na Zona Sul, se isso aconteceria, se as pessoas seriam tratadas assim”. O que dizer? Justo. Muito justo e lúcido.
Muitas coisas me doeram hoje: a menina que morreu; a dor de cada membro da família que chegava – cada grito de desespero era uma nova morte; o desespero e perplexidade dos alunos vendo o corpo, deitados no chão, e não sabendo o que fazer; a insensibilidade dos policiais militares que, nem ao lado do corpo da criança, pararam de rir, zombar e atiçar a dor da população; o despreparo e, ao mesmo tempo, o amor e empatia dos professores e funcionários para lidar e ajudar na situação; a impotência diante desta estrutura asfixiante e imobilizante. Mas nada se comparou a dor sentida ao ler a mensagem que recebi do professor que mudou o colégio com sua nova forma de organizar a Educação Física, dando esperança a dezenas de alunos-atletas, que até então eram apenas “péssimos alunos” ou “projeto de marginais”: “Obrigado, Júnior. Mas a minha pergunta é: do que adiantou eu ajudar ela a sonhar?” (Por Alcidesio Júnior, professor da Escola Municipal Jornalista Daniel Piza – do site psolcarioca)