Por Luís Fernando Praga
Tenho uma gatinha branca de 5 meses e uma filha branca, classe média, bem alimentada, de colégio particular, 7 anos de idade, que não se largam.
Ontem a gata arranhou a menina, que, ao lavar os ferimentos superficiais, sentiu a água tocar os cortes e foi aos prantos, gritando: “Ai! Eu vou morrer!!”.
Exagerada, a minha filha, não nego, mas é duro para um pai ver sua filhinha querida chorando e gritando, desesperada, que irá morrer.
Pensei que isso nem sempre é exagero e me veio a ideia de que, naquele exato momento, havia uma criança de 7 anos, muito amada por seus pais, gritando de dor, com a pele queimada e mutilada por uma guerra que está acontecendo neste mundo em que vivo. Pensei na impotência daqueles pais diante do sofrimento de um filho que realmente está agonizando e inevitavelmente morrerá à sua frente em questão de minutos.
Pronto, o filho deles já morreu. A guerra continua e, não tarda, morrerá o próximo filho amado de mais alguém que mora longe.
Não preciso ir longe nem ir à guerra para ver crianças sofrendo e morrendo. A proporção é absurdamente maior entre os pobres. Crianças amadas morrem de forma banal, privadas da infância, da possibilidade de aprender e de se tornarem bom adultos, pelo simples fato de serem mais pobres.
São vítimas de uma guerra social fomentada por um sistema injusto e rapinante, amparado por uma estrutura desagregadora que se utiliza de gente como munição, visando a manter seres humanos iguais, segregados por castas. A casta mais alta, aquela que jamais mostra a cara, manipula todos abaixo dela e é capaz de atrocidades para se manter no topo.
Sem opção, nascemos dentro deste sistema e aprendemos que devemos aceitá-lo.
Temos que aceitar com naturalidade “guerras religiosas”, cujos interesses, creio, jamais foram os de Deus, que matam nossos irmãos e que rendem bilhões de dólares para a indústria bélica. Aceitamos fronteiras impostas a contragosto dos povos. Somos passivos à imposição de que, se não competirmos para que alguém fique abaixo de nós, se não trabalharmos para sustentar este sistema assassino, teremos menos dinheiro, ficaremos uma casta abaixo e a chance de eu ver a minha filhinha agonizando de verdade à minha frente será bem maior.
No sistema em que todos nascemos, o dinheiro paga a liberdade de criminosos e a falta de dinheiro faz com que pobres inocentes passem suas vidas em presídios. No sistema, o dinheiro permite o acesso a medicamentos e outras conquistas tecnológicas que deveriam se estender a todos, e a falta de dinheiro faz com que morra gente tão merecedora de viver quanto qualquer um.
No sistema que fomos obrigados a abraçar, sem escolha, o dinheiro escolhe a informação que será maciçamente transmitida pelos veículos de comunicação e diz aos pobres que eles precisam trabalhar à exaustão se quiserem obter o sucesso dos ricos (aqueles que massacram os pobres e ignoram sua humanidade).
A mídia comprada informa a seus hipnotizados, ricos e pobres, que aqueles que enxergam e alertam quanto à brutalidade, às incoerências e à desumanidade do sistema, artistas, poetas, educadores, ativistas e os que clamam por justiça social, são gente perigosa, defensores de bandidos, contrários à moral e aos bons costumes, gente a ser evitada e combatida.
O sistema em que todos nascemos nos dita, desde tenra idade, a forma deturpada como devemos ver o mundo, como devemos ser obedientes e a quem devemos ter como aliados e como inimigos. Ele nos quer, a todos, cegos e manipuláveis, para continuar extraindo o máximo de nós sem que reajamos.
O sistema combate o acesso dos pobres (a maioria absoluta da população mundial) à educação; e combate todo e qualquer modelo educacional que estimule o questionamento profundo, o livre pensamento, o respeito às diferenças e a autonomia do indivíduo como pedra fundamental para a construção de uma sociedade equilibrada.
O sistema sob o qual estamos todos soterrados detém um fantástico know how na arte de jogar gente contra gente e desrespeitar o ser humano, uma espécie realmente limitada e imperfeita. Por outro lado, eleva à condição de divindade a ser adorada, com valor maior que o da própria vida, uma desgastada invenção humana (aquela espécie imperfeita e limitada): o dinheiro.
Ninguém “merece” viver menos ou com menos dignidade que ninguém.
A suposta necessidade de competir nos cega de enxergar a humanidade dos outros e as vidas que se perdem aos milhões, a cada dia, em decorrência da competição. O sistema não quer que estejamos atentos à barbárie com a qual somos tão coniventes.
A habilidade do sistema em jogar gente contra gente faz com que aqueles pouco menos cegos, os que enxergam a barbárie, se voltem contra aqueles que não a percebem (não se pode condenar um cego pela cegueira) e contra um sistema não humano e sem rosto.
Eu enxerguei o sofrimento de quem não sou eu, mas eu não o senti na pele. Optei por ver, sem me envolver; afinal, vivo a ilusão de que fronteiras e alguns privilégios de que disponho me afastam da possibilidade de sofrer como aqueles miseráveis. Eu ainda poderia agradecer ao sistema pela minha condição e questionar: “Para que falar em terror se está tudo bem comigo da forma como está?”
Eu abri meus olhos e vi crianças como minha filha sofrendo dores torturantes, vi pais e mães amputados de seus filhos, vi famílias à míngua e povos privados de dignidade. Eu abri meus olhos e enxerguei a submissão humana ao dinheiro e nossa omissão ante o sofrimento dos semelhantes. Eu abri meus olhos e compreendi que não devo combater os cegos, mas lutar para que todos adquiram a condição de enxergar; e depois, de enxergar ainda além.
Eu abri meus olhos e percebi que sou incapaz de enxergar uma saída definitiva. Preciso do auxílio de outras visões. Percebi que enxergo uma parte do problema que outros ignoram, mas vejo muito pouco da solução, e isso faz de mim tão cego quanto aqueles a quem condeno. Percebi a necessidade de que cada vez mais olhos e mentes queiram se abrir, a fim de enxergarem alternativas a esta prisão da qual todos somos reféns.
Precisamos criar uma moeda alternativa ao dinheiro, uma moeda com a qual o povo oprimido possa contar em abundância. Hoje, a meus olhos meio cegos, parece que tal moeda é a própria vida. Nós, abaixo do topo da pirâmide das castas, temos muito mais vidas que aquela ridícula minoria que nos controla com dinheiro.
Para que a “moeda vida” se valorize e torne obsoleta a moeda do sistema, precisamos ser mais cooperativos e solidários. Precisamos de mais poetas e menos poderosos, de mais estudantes e menos soldados, de mais gente que ame e menos gente que odeie, de mais rebeldes e menos submissos, de mais gente livre e menos gente encarcerada, de mais admiradores das diferenças humanas e menos preconceituosos, de mais gente que encontre soluções na vida e menos gente que encontre soluções na morte.
Não tenho inimigos humanos, meu inimigo é você, sistema, que usa humanos contra mim. Para combatê-lo é essencial que eu saiba sentir, cada vez mais, a dor humana. Preciso entender a dor alheia como importante componente de minha própria dor; e preciso da ajuda de mais gente sentindo e mais olhos enxergando.