Em São Paulo – Em 1938, o pintor pernambucano Cícero Dias foi chamado de “um selvagem esplendidamente civilizado” pelo crítico de arte francês André Salmon, que parafraseava um poema de Verlaine para Rimbaud. A definição descreve perfeitamente sua trajetória nas artes, agora retratada pela exposição Cícero Dias – Um percurso poético. A mostra chega à unidade de São Paulo do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) em 21 de abril depois de sua estreia em Brasília e fica aberta até 3 de julho, antes de seguir para o Rio em 1º de agosto.
Com curadoria de Denise Mattar, curadoria honorária de Sylvia Dias, filha do artista, e produção da Companhia das Licenças, a exposição apresenta ao público um conjunto de 125 obras de um dos mais importantes artistas brasileiros do século XX, que completaria 110 anos em 2017 e cuja trajetória é reconhecida internacionalmente, contextualizando sua história e evidenciando sua relação com poetas e intelectuais brasileiros e sua participação no circuito de arte europeu.
Além das obras, a exposição trará ainda cartas, textos e fotos de Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Murilo Mendes, José Lins do Rego, Mário Pedrosa, Pierre Restany, Paul Éluard, Roland Penrose, Pablo Picasso, Alexander Calder, entre outros. “Na sua longa e prolífica carreira, Cícero Dias manteve, como poucos, a fidelidade a si próprio. Sempre foi inteiramente livre, ousando fazer o que lhe dava vontade, sem medo das críticas”, afirma a curadora Denise Mattar.
A exposição traz um panorama de toda produção do artista, dividida em três grandes núcleos que delineiam seu percurso poético. São eles: Brasil, Europa e Monsieur Dias – Uma vida em Paris – cada um deles, por sua vez, dividido em novos segmentos, cuja leitura não é estanque, mas entrecruzada e simultânea.
A mostra é aberta por “Entre Sonhos e Desejos”, que traz um conjunto de 30 aquarelas produzidas entre 1925 e 1933. “Lírico, agressivo, caótico, sensual, poético e emocionante, o trabalho de Cícero Dias nesse período era muito diverso de tudo o que se produzia na época. Ele sacudiu os nossos incipientes modernistas, estonteados pela força, a estranheza e a espontaneidade da obra de Cícero”, diz a curadora.
“Memórias de Engenho” é majoritariamente composto por óleos realizados entre 1930 e 1939, quando a produção de Cícero Dias é mais narrativa e lírica, voltada para suas lembranças de infância no Engenho Jundiá. O conjunto reúne também algumas obras raras produzidas na sua adolescência e a famosa gravura aquarelada que ilustrou a primeira versão de “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, de quem era grande amigo.
“E o Mundo começava no Recife…” apresenta obras que fazem um contraponto às lembranças rurais, mostrando as recordações urbanas do jovem Cícero no Recife. As casas coloniais debruçadas para o mar, os sobrados e seus interiores, os jardins com casais românticos, e as alcovas – com amores mais carnais. Nesse momento, Cícero produziu obras excepcionais, entre elas Sonoridade da Gamboa do Carmo e Gamboa do Carmo no Recife.
Ainda nos anos 1930, o artista realizou alguns figurinos para importantes espetáculos, como o balé Maracatu de Chico Rei, de Francisco Mignone, em 1933; e o balé Jurupari, de Villa-Lobos, em 1934. Inéditos até hoje, os trabalhos são apresentados na exposição num pequeno conjunto intitulado Teatro.
Em 1937, incentivado por Di Cavalcanti, Cícero Dias viajou para Paris. Poucos meses após a sua chegada, ele apresentou uma exposição na Galerie Jeanne Castel, com obras trazidas do Brasil e outras já pintadas em Paris. A mostra foi um sucesso de público, de crítica e de vendas.
Integrado ao ambiente artístico da cidade, Cícero tornou-se muito amigo de Picasso e do poeta Paul Éluard, mas, em 1939, a eclosão da II Guerra veio desconstruir esse momento precioso. Em 1941 ele foi preso e enviado a Baden-Baden para uma troca de prisioneiros e acabou se tornando o responsável por levar a poesia “Liberté” de Éluard para fora da França ocupada pelos nazistas. Impressa pelos Aliados, a poesia foi jogada de avião sobre Paris, para dar ânimo à Resistência. Por essa ação, Cícero foi condecorado no final da Guerra.
“Entre a Guerra e o Amor” reúne majoritariamente reproduções de fotos, cartas, documentos, além de desenhos e aquarelas, de pequeno formato, realizadas por Dias durante a II Guerra Mundial, em condições precárias. São testemunhos das suas vivências no conflito, e também de seu amor por Raymonde, que conhecera nesse período e se tornaria sua mulher.
Quando saiu de Baden-Baden, Dias seguiu com Raymonde para Lisboa, onde sua obra passou por uma mudança radical. Seu trabalho tornou-se eufórico e selvagem, exorcizando os fantasmas da guerra ainda não terminada. Este momento de sua produção define “Lisboa – Novos Ares”. “Nessa fase, Cícero Dias parece saltar sobre nós, ele nos sacode em telas que fariam inveja aos ‘fauves’, pela audácia e pela novidade das buscas cromáticas, dos traços ousados e dos temas irreverentes, irônicos e provocativos. Títulos ambíguos completam as obras: Mamoeiro ou dançarino?, Galo ou Abacaxi? Ele simplifica o desenho, usa pinceladas brutas, cores inusitadas e estridentes, e tonalidades intensas e brilhantes. Tudo grita e desafia!”, destaca a curadora.
Ainda na capital portuguesa, Dias deu início à sua despedida da figuração, em um trabalho que ficou conhecido como fase vegetal, retratado na exposição por “A Caminho da Abstração”. Nesse momento, o artista criou múltiplas imagens superpostas a partir da vegetação, incorporando novos elementos plásticos e borrando fronteiras entre figuração e abstração.
A seguir, Dias passou a trabalhar com formas curvas e sensíveis, abrindo o caminho para a abstração, tornando-se o primeiro artista brasileiro a trabalhar com essa vertente. Sua produção deste período está reunida no segmento “Geometria Sensível”.
Em 1948, Cícero veio para o Brasil para executar uma série de pinturas murais abstratas, consideradas as primeiras da América Latina. O trabalho foi realizado na sede da Secretaria da Fazenda do Estado de Pernambuco, em Recife, e causou intensa polêmica.
Em 1945, com o final da Guerra, Cícero voltou a Paris convocado por Picasso. Lá ele abandonou as curvas e as cores suaves por um trabalho mais geométrico. “Abstração Plena” reúne um conjunto de obras dessa produção que ele fará até os anos 2000. Longe do Concretismo e da proposta de supressão da subjetividade, o abstracionismo de Dias é vibrante, quente e luminoso, mais próximo de Kandinsky. Na Europa, seu trabalho foi acolhido com entusiasmo, e ele passou a integrar o Grupo Espace e a expor na importante galeria Denise René.
Avesso a escolas e fiel a si próprio, Cícero Dias desenvolveu nos anos 1960, paralelamente à sua pesquisa geométrica, uma série chamada “Entropias”, nas quais deixava a cor escorrer, misturar-se, e esvair-se. A série é representada na exposição por um pequeno grupo de trabalhos.
“Menos do que tachismo, ou abstracionismo informal, as entropias parecem um despudorado mergulho nas possibilidades do uso da tinta; sem retas, sem linhas marcadas, sem nenhum esquema formal a cumprir – o fascínio da liberdade, do deixar-se ir”, afirma Denise Mattar.
No final dos anos 1950, Cícero Dias retornou às suas origens trazendo de volta o imaginário lírico, permeado de memórias e referências de sua terra natal. Mas o fez em outro diapasão, incorporando as suas descobertas ao longo da vida. Resgatou a delicadeza das mulheres sonhadoras e esvoaçantes dos anos 1920, manteve os traços largos e a audácia colorística dos anos “fauves”, e apoiou essas imagens na estrutura geométrica de sua abstração. Para a curadora, “essa vertente, que pintará até o final de sua vida, tem sabor mais doce, como fruta madura”.
As obras que integram a mostra provêm de algumas das principais instituições do país, como Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (MAC-USP), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), Museu Oscar Niemeyer (MON), Museu de Arte Brasileira da FAAP (MAB-FAAP), Museu do Estado de Pernambuco (MEPE), Fundação Gilberto Freyre, Instituto Casa Roberto Marinho, além de coleções particulares como Sérgio Fadel (RJ), Gilberto Chateaubriand (RJ), Waldir Simões de Assis (PR) entre outros. Completa a exposição um expressivo número de trabalhos vindos de coleções internacionais, criando assim uma oportunidade única para a apreciação da obra desse grande artista.
Um conjunto de atividades na exposição possibilita ao público de todas as idades entender a variedade da obra de Cícero Dias e os elementos recorrentes que a permeiam. Uma instalação multimídia, por exemplo, permite que o visitante escolha entre imagens presentes no trabalho do artista e crie sua própria aquarela. Por meio de um quebra-cabeças o público pode também reconstituir o painel de 11 metros da obra Eu vi o mundo… ele começava no Recife. Fragmentos de seis obras de várias fases de sua carreira formam ainda um cubo-mágico que pode ser montado das mais diversas formas.
Os visitantes também podem fazer uma visita guiada pelo celular, com a ajuda de um aplicativo que pode ser baixado na Apple Store ou no Google Play, também disponível em libras. O guia conduz o público por um caminho sonoro de 30 pontos fundamentais para a compreensão da arte e da vida do artista. (Carta Campinas com informações de divulgação)
Exposição Cícero Dias – Um percurso poético
Centro Cultural Banco do Brasil | CCBB SP
Período expositivo: 21 de abril a 3 de julho
Horário de visitação: de quarta-feira a domingo, das 9h às 21h
Entrada gratuita
Agendamento realizado pelo sistema Ingresso Rápido – aplicativo disponível para Android e IOS ou site www.ingressorapido.com.br
Endereço: Rua Álvares Penteado, 112 – Centro
Próximo às estações Sé e São Bento do Metrô
Informações: (11) 3113-3651/3652
Estacionamento conveniado: Estapar
Rua Santo Amaro, 272
R$ 15,00 pelo período de 5 horas. (Necessário validar o ticket na bilheteria do CCBB.)
Traslado gratuito
Transporte gratuito até as proximidades do CCBB – embarque e desembarque na Rua Santo Amaro, 272, e na Rua da Quitanda, próximo ao CCBB. No trajeto de volta, tem parada no Metrô República.
Acesso e facilidades para pessoas com deficiência física // Ar-condicionado