Por Cauê S. Ameni, Hugo Albuquerque e André Takahashi
Teoria da conspiração ou desconfiança justificada? Após a queda do avião que, dentre outras vítimas fatais, resultou na morte do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Teori Zavascki, o empresário Carlos Alberto Fernandes Filgueiras e mais três pessoas imediatamente se instaurou um debate narrativo sobre o que aconteceu. Teori era relator do processo da Lava Jato na Suprema Corte e estava às vésperas de retirar o sigilo de cerca de 900 depoimentos e homologar as 77 delações da Odebrecht. O mais relevante acordo de colaboração da história da Justiça do país, envolvendo nomes de figurões dos mais variados partidos. Há quem prefira ver nisso uma trágica coincidência, mas será que aqueles que desconfiam de tal versão não tem motivos para tanto?
Nos últimos 50 anos, o Brasil, o país da cordialidade, fabricou um histórico de acidentes estranhos que impactaram diretamente nos rumos da política nacional: no ar, marechal Humberto Castelo Branco, três meses depois de deixar a presidência para seu desafeto Costa Silva — vinculado à ala mais dura do regime –, morreu vítima de um estranho acidente aéreo no dia 18 de julho de 1967; em terra Juscelino Kubitschek, suspeito de ter sido assassinado, em 22 de agosto de 1976, segundo o último relatório da Comissão da Verdade. A morte de Teori, portanto, é mais um capítulo desse estranho histórico.
O MPF e a PF abriram inquérito para apurar a queda. A pergunta norteadora da investigação é: em quais circunstâncias o bimotor C90GT King Air, fabricado pela norte-americana Hawker Beechcraft, com inspeção em dia segundo a Anac, conduzido por Osmar Rodrigues, o piloto “mais experiente” da rota São Paulo-Paraty, caiu no mar, levando consigo o relator da Lava Jato e ministro indicado ao STF pela ex-presidenta Dilma Rousseff? Logo agora que as delações atingiriam o núcleo duro do atual governo pós-impeachment, citando expressamente propina de R$ 2 milhões em dinheiro vivo para Alckmin, R$ 23 milhões na Suíça para Serra e R$ 10 milhões para o próprio Michel Temer?
Enquanto não surgem evidências concretas, a mídia hegemônica descarta a hipótese de assassinato político, assim como descartou a narrativa do golpe em 1964 e 2016. Trata o assunto como se a possibilidade não pudesse ser discutida, enquanto as peças do quebra-cabeça afundam no mar.
Não entrando na paranoia, mas perseguindo o hábito jornalístico de reunir fatos e ser cético diante das versões oficiais — sobretudo em situações de interesse nacional — garimpamos elementos curiosos, esparsos na rede, para montar esse quebra-cabeça.
1) “Parecia a esquadrilha da fumaça”
De acordo com o relato do barqueiro Célio de Araújo, testemunha ocular do acidente que acionou os bombeiros para o resgate: “A chuva ainda tava fraca. Vento não tinha. Acho que foi problema no motor esquerdo. Deve ter desligado o motor esquerdo e ele ficou só com o motor direto, quando foi bater a asa no chão”. Então o avião pode não ter caído por causa de desorientação de pilotos e do mau tempo — mesma alegação usada no laudo oficial de Eduardo Campos, segundo o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (Cenipa)?
2) Avião seguido há 16 dias?
O jornalista Chico Malfitani divulgou uma foto, a partir dos dados que lhes foram repassados pelo engenheiro da USP Leonardo Manzione, que mostra o data base da ficha técnica do avião da Beechcraft acessado 1.885 vezes 16 dias atrás (3 de janeiro de 2017) – 3,7 vezes mais do que todas as visualizações anteriores. O site é de Fredrik Lindahl, CEO da Flightradar24 AB | MBA, e está hospedado nos EUA, onde pode-se identificar os IPs de acesso, apurou o jornalista Marcelo Auler. Quem fez essas consultas e por que tanta curiosidade na ficha técnica do mesmo bimotor com o registro PR-SOM LJ-1809?
3) Hangar movimentado?
Segundo reportagem da Folha de S. Paulo: “As horas após a queda do avião foram movimentadas no hangar de Campo de Marte, onde o bimotor King Air era guardado e onde os passageiros do voo embarcaram. Por volta das 19h, um funcionário chegou ao hangar da empresa TAG. Ele disse ser responsável pelas câmeras de segurança do local e começou a recolher computadores do hangar. Minutos depois, membros da Aeronáutica e da Polícia Federal também estiveram no local em busca das imagens do circuito interno.”
4) Um estranho resgate
O blogueiro e jornalista André Barcinski, que estava a passeio em Paraty, transcreveu alguns diálogos que teve com testemunhas da tragédia: “Ela tava viva bem depois do acidente […] Dava para ver a mulher pedindo socorro dentro do avião”, disse o pescador Wallace, 23 anos. O jornalista suspeitava da versão, até ela ser corroborada por um oficial: “Ficou pelo menos 40 minutos com vida no avião”.
Os relatos foram ficando cada vez mais macabros. Segundo o barqueiro Ademilson de Alcantara Mariano, um oficial viu uma mão batendo no vidro e gritou: “Rápido! Tem alguém vivo aqui!”. Mariano continua: “Dava para ver a mão de alguém batendo no vidro. Depois ouvimos os gritos, era uma voz de mulher: ‘Pelo amor de Deus, me tira daqui, não aguento mais!”. Deveria ser Hilda Penas Helatczuk, ou sua filha Maíra Panas. Porém, o oficial presente não contava com instrumentos adequados para abrir a aeronave e, assim, a sobrevivente silenciou após mais de 40 minutos lutando depois da queda.
Barcinski deixa claro que os destroços foram içados duas vezes. A primeira, durante a tentativa de salvamento da passageira, e a segunda, por dois barcos pesqueiros, interrompido por ordens da Aeronáutica, alegando preservar o local para a perícia.
Por fim, a Força Aérea Brasileira (FAB) desistiu de retirar o avião do fundo do mar alegando dificuldades, e passou a responsabilidade para o proprietário da aeronave, o grupo hoteleiro Emiliano, que contratará uma empresa especializada. Enquanto isso o local do acidente passa parte significativa do tempo sem nenhuma vigilância das autoridades, conforme presenciaram os jornalistas do Estadão.
5) Com ou sem caixa-preta?
Em reportagem publicada na Veja às 15h32, o King Air C90GT não tinha caixa-preta, pois o modelo da aeronave não tinha obrigação de possuir uma, segundo informações da FAB. Às 16h28, a versão foi alterada e o avião passou a ter um “gravador de voz” equivalente a uma caixa preta. “A equipe de investigadores da Aeronáutica localizou nesta sexta-feira o gravador de voz (cockpit voice recorder – CVR) da aeronave PR-SOM, acidentada em Paraty”, confirmou a FAB, em nota.
6) Ligações com o BTG Pactual?
O jornalista Alceu Castilho, num furo de reportagem, revelou que uma das empresas de Filgueiras, Forte Mar Empreendimentos e Participação, tinha 90% do seu capital social num fundo de investimento da BTG Pactual, principal banco privado de investimentos do Brasil. O ex-presidente do BTG, André Esteves, foi preso na Lava Jato em 25 de novembro de 2015 sob suspeita de tentar obstruir a operação.
Teori revogou a prisão preventiva de Esteves em dezembro. E em abril de 2016, deu liberdade ao banqueiro. Teori também retirou um inquérito que apurava a ligação da BTG ao ex-deputado Eduardo Cunha. Na delação do ex-senador Delcídio do Amaral, homologada em 15 de Março de 2016 por Teori, o senador dizia que Eduardo Cunha “funcionava como garoto de recados de André Esteves, principalmente quando o assunto se relacionava a interesses do Banco BTG”.
O BTG Pactual tem relação com a área da Petrobrás menos atingida pela Lava Jato e a mais lucrativa, a área de Exploração e Produção, que opera plataformas e navios-sonda alugados. Este último, um mercado altamente rentável e monopolizado no mundo por empresas como a texana Halliburton, que já foi dirigida pelo ex-vice-presidente dos EUA, Dick Cheney. O banco de Esteves planejava furar esse cartel de aluguel de navios-sonda através da criação da empresa Sete Brasil com fundos de pensão das estatais (Funcef, Previ, Petros) e um pouco de capital do Bradesco e Santander. A nova empresa contrataria estaleiros de empreiteiras nacionais para a construção de 29 navios-sonda, a maior encomenda do mundo.
Curioso notar que outra vítima recente de acidente aéreo, o ex-presidente da Vale, Roger Agnelli, também tinha negócios com a BTG Pactual: em 2012 ele criou uma mineradora com o banco no valor de 500 milhões de reais para atuar no Brasil, Chile e África, concorrendo com mineradoras internacionais. Isso, pouco mais de um ano depois de deixar a presidência da Vale por pressão do governo federal, que, entre outras divergências, não apoiava sua iniciativa de construir navios para a Vale em estaleiros estrangeiros.
7) Ameaças na Lava Jato
Ano passado, o filho de Teori, Francisco Prehn Zavascki, desabafou em seu Facebook as ameaças que a família vinha sofrendo. Na sexta, disse à Rádio Estadão que “não podemos descartar qualquer possibilidade. No meu íntimo, eu torço para que tenha sido um acidente, seria muito ruim para o País ter um ministro do Supremo assassinado”. À Folha ele reconfirmou que vinha recebendo ameaças e que a família estava realmente preocupada.
As ameaças lembram a situação da advogada Beatriz Catta Preta, uma das maiores especialistas em delação premiada do país, que teve que abandonar seus clientes na operação Lava Jato uma semana após deixar de ser advogada de Júlio Carmargo, empresário que fez longo depoimento em que denunciava as propinas de R$ 5 milhões de Eduardo Cunha.
Ela dizia ser “ameaçada insistentemente”. Contou ao Globo que um dia chegou em casa e o doleiro Lúcio Funaro, que vinha pedindo para que Eduardo Cunha não aparecesse nas delações, brincava com seus filhos. Funaro também é réu na Lava Jato e acusado pelo MPF de ameaçar de morte o ex-vice-presidente da Caixa Fábio Cleto por sua delação premiada, acusação destacada por Teori no despacho no qual decretou a prisão preventiva do doleiro.
8) Novas testemunhas no caso de Eduardo Campos?
Na mesma noite fatídica de quinta-feira, o irmão do ex-governador Eduardo Campos (PSB), o advogado Antônio Campos, divulgou que tinha uma nova testemunha que poderia mudar por completo os rumos das investigações sobre o acidente aéreo que resultou na morte do seu irmão. E desabafou: “Num país em que líderes e autoridades morrem de forma misteriosa em acidentes aéreos e ainda impactado pela morte do ministro Teori, resolvi revelar esse fato novo e reafirmar que esse caso de Eduardo Campos precisa ser aprofundado e é mais um caso que não pode ficar impune. Não descansarei enquanto não forem esclarecidos os fatos, independentemente de eventuais riscos que posso correr”.
O falecido governador Eduardo Campos, por sinal, chegou a ser citado na operação Lava Jato a respeito da construção da refinaria de Abreu e Lima, sendo ligado justamente pelos operadores que intermediaram a negociação do jato em que o então candidato à presidência morreu.
9) O áudio de Jucá
No já célebre áudio no qual o senador, ex-ministro do governo Temer e presidente do PMDB, Romero Jucá, hoje um dos principais articuladores do governo Temer, conversa sobre as reais razões por trás das movimentações para derrubar a então presidenta Dilma com o ex-senador Sérgio Machado e a opinião de ambos sobre o falecido ministro Teori é taxativa:
“Um caminho é buscar alguém que tem ligação com o Teori [Zavascki, relator da Lava Jato], mas parece que não tem ninguém”, [Machado].
“Não tem. É um cara fechado, foi ela [Dilma] que botou, um cara… Burocrata da… Ex-ministro do STJ [Superior Tribunal de Justiça]”, [Jucá].
A opinião de Jucá e de Machado, que ironicamente teve sua delação homologada por Teori, não é nada particular, pessoal ou a priori suspeita, pelo contrário: ela ilustra o que muitos políticos pensavam à época do ministro, isto é, uma ameaça justamente por não ter vínculos políticos que, nesse caso, servissem para flexibilizar suas decisões a respeito da Lava Jato.
E conclui o diálogo apontando a saída: “[A solução] tem que ser política. Como é política? Tem que resolver essa porra”. No áudio, Jucá e Machado ignoram ou não dão à devida importância para eventuais vínculos empresariais de Teori.
10) Cui bono?
A pergunta básica de toda investigação criminal foi cunhada por Marco Túlio Cícero em Roma: “Cui Bono?” — “a quem beneficia?” em tradução literal. Mesmo nome dado a última fase da Lava Jato para investigar a suspeita de fraude na liberação de recursos da Caixa Econômica Federal. Os alvos foram Geddel Vieira Lima, ex-ministro do governo Temer, e o pioneiro do impeachment Eduardo Cunha — ela deriva da operação Catilinárias, que tinha como alvo a cúpula do PMDB.
Teori pode não ter sido assassinado como foi o juiz Giovanni Falcone, principal juiz na Operação Mãos Limpas — operação em que a Lava Jato baseia-se –, mas se esses estranhos acontecimentos não forem completamente expostos à luz do sol, explicando cada detalhe, a suspeita de que houve um assassinato político tende a crescer.
Enquanto a mídia hegemônica se preocupa em especular sobre a vida profissional da namorada de Teori, ou sobre a vida da massoterapeuta de Filgueiras, o governo do presidente Michel Temer, citado 43 vezes pelo ex-vice-presidente de Relações Institucionais da Odebrecht na delação prestes a ser homologada, ganhará um tempo precioso enquanto não se decide quem será o novo relator e/ou o novo ministro, como declarou expressamente o ministro chefe da Casa Civil de Temer, Eliseu Padilha.
Depois do Decálogo
Resta aos investigadores incautos, jornalistas independentes, whistleblowers e o trabalho coletivo da internet desvendar se pretendem ou não dar um “golpe dentro do golpe”, como aconteceu em nossa última ditadura, que consolidou o regime militar e acabou com as eleições diretas. Uma vez que os veículos hegemônicos pouco farão, ao que tudo indica, para apurar este caso — em dezembro, o governo bateu recorde de gastos com publicidade, aumentando-a em 106%, irrigando todo setor com dinheiro público em plena recessão.
Entre muitas suspeitas, uma coisa é certa: diversos setores conservadores não gostavam de Teori por ter repreendido Sérgio Moro pela divulgação inconstitucional dos grampos telefônicos irregulares entre Dilma e Lula. Teori também criticou o “espetáculo” midiático do PowerPoint do procurador Deltan Dallagnol em que acusava Lula de representar o chefe máximo da quadrilha. Ano passado, um grupo chegou a escrachar a fachada do prédio onde o ministro morava no Rio Grande do Sul com uma faixa de “pelego do PT”, “Teori traidor” e chamá-lo de “bolivariano”.
Se é certo afirmar que há precipitação em concluir, já agora, que se tratou de um atentado, é igualmente apressado descartar essa hipótese diante dos fatos nebulosos que o envolvem — o prestigioso jornal londrino The Guardian, por sinal, não descarta essa possibilidade. Não é “teoria” da conspiração, delírio ou mera especulação infundada, uma vez que há fatos concretos na conjectura atual e histórica.
Em um país como o Brasil, no qual até mesmo a verdade sobre fatos históricos como a Guerra do Paraguai e a Ditadura Militar permanecem submersos, defender uma investigação rigorosa é a única atitude cética possível: não apenas porque é o que manda a lei, mas porque é um primeiro passo para que a sociedade civil intervenha no andamento do processo de substituição de Teori, não se resignando ao papel de mera espectadora, deixando Temer e 11 senadores investigados na Lava Jato escolherem quem será o seu juiz. (Texto integral no Outras Palavras)