Por João Neves
Não tem mulher melancia, mulher jaca, ou moranguinho,
sou a mulher banana, sou mais o meu popôzinho.
Elas são popozudas, são mulheres gostosas
mas os bofes me preferem, sou biba e estou na moda.
Se tem velocidade 6, eu faço até 7.
Quem já viu gostou, e quem me provou repete.
Sou a mulher do futuro, vê se deixa de ser tonto.
Esquece as popozudas e prova o meu popô de pombo,
E prova o meu popô de pombo.
popô de pombo.
Tira a casquinha mas vê se não se engana,
Pra quem não me conhece sou a mulher banana.
Sou a mulher banana.
A canção marca o momento em que a cultura funk passou a conviver com as novas vozes de MC’s que tomavam conta do baile no século XXI. Dentre essa geração que se renovava subiam ao palco Tati Quebra Barraco, Gaiola das Popozudas e MC Nem, em decorrência, eu suspeito, dos movimentos feministas e das provocações discursivas resultantes do engajamento feminino que ganhava novas roupagens. Foi nessa onda que Mulher Banana veio rimar. As mulheres trans e travestis, antes esculachadas nos bailes, sendo um dos principais alvos de chacotas e de piadas machistas/transfóbicas, ganharam a cena e mostraram para que vieram. E, da mesma forma que as violências lhes eram direcionadas, repetindo uma ação histórica de nossa sociedade sexista/machista/patriarcal, elas exigiram direito de resposta e resistiram.
Há notícias que a vida da Mulher Banana no mundo funk, apesar do sucesso e da representatividade adquirida na cena, não foi de nada harmônica. A MC conta, em entrevistas, que não foram poucos os bailes em que homens lhe tacavam objetos ou lhe faziam obscenidades. A violência gratuita e o desrespeito com o trabalho da artista eram uma constante – nada diferente de outros espaços de nossa sociedade¹. No entanto, as investidas da cantora abriu, no meio funk, um riquíssimo espaço para que outras mulheres trans pudessem desabafar e denunciar as agressões vividas.
As batidas do funk foram processadas, desde sua gênese, entre as engrenagens que provocam a vazão de sentimentos reprimidos. Assim, desde de meados dos anos de 1990, quando surgiram as primeiras canções autorais do gênero no Brasil, a cena (in)surgiu como um canal expressivo dos sujeitos marginalizados/patologizados/criminalizados. Essa produção cultural trazia à tona todas as frustrações, ressentimentos e angustias operadas pelos dispositivos de sujeição da modernidade. Por isso, tão alto, tão forte, tão intenso, tão misógino, tão violento, tão covarde, tão belo, tão feio, tão … Tudo muito grande loquente, massivo, visível (cegante) e ruidoso (ensurdecedor). Alegre e entristecedor ao mesmo tempo. Esse é o fUnK.
No interior da cena eram operadas transformações que nem a dialética do esclarecimento² conseguiria explicar, pois os produtos vendáveis da indústria cultural ganhavam outras dimensões, rompia-se com as embalagens e os conteúdos das mercadorias. A MC Transnitta, por exemplo, provoca releituras das teses de Adorno e Horkheimer. É evidente que o retorno a estes clássicos não passaria ileso pelos enfrentamentos da Teoria Queer. No entanto, mal poderíamos imaginar que o movimento de revisita teórica e epistemológica não estaria restrito ao meio acadêmico, uma vez que os impulsos Queer estavam presente, talvez até de forma mais intensa que nas pesquisas acadêmicas, também no meio funk.
Isso visto, percebemos que o funk, dentre seus milhares de artistas, tem muito a dizer. Nas produções desse gênero pulsão também resistências. A consciência do processo de luta e da necessidade de reconfigurar as máquinas de subjetivação – presentes na sociedade contemporânea e notadas na cultura funk – se evidenciam quando o MC Queer indica, durante entrevista, que “todo o discurso da música foi construído em cima da linguagem do próprio opressor. Eu e muitos personagens nos assumimos orgulhosamente viados e diversos outros adjetivos similares justamente pra subverter o discurso homofóbico.” Essa fala, em conjunto com as performances explicitadas até aqui, demonstra que, apesar dos golpes, a luta LGBTT ocupa espaços historicamente negligenciados a estes sujeitos. Os dispositivos de sujeição/subjetivação são profanados dia após dia ao som do Funk.
A MC Linn da Quebrada levou, esse processo iniciado com a Mulher Banana, até as últimas consequências. Ninguém, nunca mais, as tirarão do palco! Sem mais…
¹ Uma leitura sóbria e intensa que nos coloca diante dessa realidade podemos conferir no livro da Maíra Moira, “E se eu fosse puta?”, lançado recentemente.
² HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
A exatamente um ano atrás tentei ingressar no doutorado em História em um determinado programa de pós-graduação no qual elegi, durante o processo seletivo, uma determinada linha de pesquisa cujo o eixo de pesquisa era Gênero. A investigação que propus estava relacionada com as performances femininas no funk e no rap. Havia terminado o mestrado sobre as subjetividades e os sentimentos evidenciados pela cultura funk nas últimas décadas do século XX e estava empolgado para fazer um novo mergulho na documentação para trazer à tona as vozes femininas/trans/lésbicas/gay destoantes e marginalizadas que movimentaram a cena nas décadas de 1990 e 2000. No entanto, dentre os possíveis erros conceituais e metodológicos, minha reprovação foi justificada com o argumento de que: “a FAPESP não interessaria por essa pesquisa. Não seria aprovado, não teria bolsa.” O ano se passou e novos rumos foram tomados, contudo, as mulheres e xs LGBTT’s no rap e no funk, apesar do descaso acadêmico, ainda me provocam, me fazem procurar respostas e me (des)construir. Ofereço esse texto as minhas amigxs trans e travestis e a todXs os coletivos e coletivas LGBTT’s e feministas que fomentam outras subjetividades. Sem elxs outros rumos não seriam tomados e novas conquistas não seriam concretizadas.
João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.