Por João Neves

captura-de-tela-de-2016-11-20-01_48_19Não é nenhuma novidade ouvir os beats do funk protagonizando performances ousadas e transgressoras. Em meados dos anos 2000, por exemplo, no auge do fenômeno – machista, diga-se de passagem – das “mulheres frutas” que se apresentavam nos bailes da equipe de som Furacão 2000, a Mulher Banana apareceu mostrando uma perspectiva trans sobre corpo, gênero e sexualidade.

Não tem mulher melancia, mulher jaca, ou moranguinho,
sou a mulher banana, sou mais o meu popôzinho.
Elas são popozudas, são mulheres gostosas
mas os bofes me preferem, sou biba e estou na moda.
Se tem velocidade 6, eu faço até 7.
Quem já viu gostou, e quem me provou repete.
Sou a mulher do futuro, vê se deixa de ser tonto.
Esquece as popozudas e prova o meu popô de pombo,
E prova o meu popô de pombo.
popô de pombo.
Tira a casquinha mas vê se não se engana,
Pra quem não me conhece sou a mulher banana.
Sou a mulher banana.

A canção marca o momento em que a cultura funk passou a conviver com as novas vozes de MC’s que tomavam conta do baile no século XXI. Dentre essa geração que se renovava subiam ao palco Tati Quebra Barraco, Gaiola das Popozudas e MC Nem, em decorrência, eu suspeito, dos movimentos feministas e das provocações discursivas resultantes do engajamento feminino que ganhava novas roupagens. Foi nessa onda que Mulher Banana veio rimar. As mulheres trans e travestis, antes esculachadas nos bailes, sendo um dos principais alvos de chacotas e de piadas machistas/transfóbicas, ganharam a cena e mostraram para que vieram. E, da mesma forma que as violências lhes eram direcionadas, repetindo uma ação histórica de nossa sociedade sexista/machista/patriarcal, elas exigiram direito de resposta e resistiram.

Há notícias que a vida da Mulher Banana no mundo funk, apesar do sucesso e da representatividade adquirida na cena, não foi de nada harmônica. A MC conta, em entrevistas, que não foram poucos os bailes em que homens lhe tacavam objetos ou lhe faziam obscenidades. A violência gratuita e o desrespeito com o trabalho da artista eram uma constante – nada diferente de outros espaços de nossa sociedade¹. No entanto, as investidas da cantora abriu, no meio funk, um riquíssimo espaço para que outras mulheres trans pudessem desabafar e denunciar as agressões vividas.

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As batidas do funk foram processadas, desde sua gênese, entre as engrenagens que provocam a vazão de sentimentos reprimidos. Assim, desde de meados dos anos de 1990, quando surgiram as primeiras canções autorais do gênero no Brasil, a cena (in)surgiu como um canal expressivo dos sujeitos marginalizados/patologizados/criminalizados. Essa produção cultural trazia à tona todas as frustrações, ressentimentos e angustias operadas pelos dispositivos de sujeição da modernidade. Por isso, tão alto, tão forte, tão intenso, tão misógino, tão violento, tão covarde, tão belo, tão feio, tão … Tudo muito grande loquente, massivo, visível (cegante) e ruidoso (ensurdecedor). Alegre e entristecedor ao mesmo tempo. Esse é o fUnK.

No interior da cena eram operadas transformações que nem a dialética do esclarecimento² conseguiria explicar, pois os produtos vendáveis da indústria cultural ganhavam outras dimensões, rompia-se com as embalagens e os conteúdos das mercadorias. A MC Transnitta, por exemplo, provoca releituras das teses de Adorno e Horkheimer. É evidente que o retorno a estes clássicos não passaria ileso pelos enfrentamentos da Teoria Queer. No entanto, mal poderíamos imaginar que o movimento de revisita teórica e epistemológica não estaria restrito ao meio acadêmico, uma vez que os impulsos Queer estavam presente, talvez até de forma mais intensa que nas pesquisas acadêmicas, também no meio funk.

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Isso visto, percebemos que o funk, dentre seus milhares de artistas, tem muito a dizer. Nas produções desse gênero pulsão também resistências. A consciência do processo de luta e da necessidade de reconfigurar as máquinas de subjetivação – presentes na sociedade contemporânea e notadas na cultura funk – se evidenciam quando o MC Queer indica, durante entrevista, que “todo o discurso da música foi construído em cima da linguagem do próprio opressor. Eu e muitos personagens nos assumimos orgulhosamente viados e diversos outros adjetivos similares justamente pra subverter o discurso homofóbico.” Essa fala, em conjunto com as performances explicitadas até aqui, demonstra que, apesar dos golpes, a luta LGBTT ocupa espaços historicamente negligenciados a estes sujeitos. Os dispositivos de sujeição/subjetivação são profanados dia após dia ao som do Funk.

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A MC Linn da Quebrada levou, esse processo iniciado com a Mulher Banana, até as últimas consequências. Ninguém, nunca mais, as tirarão do palco! Sem mais…

¹ Uma leitura sóbria e intensa que nos coloca diante dessa realidade podemos conferir no livro da Maíra Moira, “E se eu fosse puta?”, lançado recentemente.
² HORKHEIMER, M., e ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
A exatamente um ano atrás tentei ingressar no doutorado em História em um determinado programa de pós-graduação no qual elegi, durante o processo seletivo, uma determinada linha de pesquisa cujo o eixo de pesquisa era Gênero. A investigação que propus estava relacionada com as performances femininas no funk e no rap. Havia terminado o mestrado sobre as subjetividades e os sentimentos evidenciados pela cultura funk nas últimas décadas do século XX e estava empolgado para fazer um novo mergulho na documentação para trazer à tona as vozes femininas/trans/lésbicas/gay destoantes e marginalizadas que movimentaram a cena nas décadas de 1990 e 2000. No entanto, dentre os possíveis erros conceituais e metodológicos, minha reprovação foi justificada com o argumento de que: “a FAPESP não interessaria por essa pesquisa. Não seria aprovado, não teria bolsa.” O ano se passou e novos rumos foram tomados, contudo, as mulheres e xs LGBTT’s no rap e no funk, apesar do descaso acadêmico, ainda me provocam, me fazem procurar respostas e me (des)construir. Ofereço esse texto as minhas amigxs trans e travestis e a todXs os coletivos e coletivas LGBTT’s e feministas que fomentam outras subjetividades. Sem elxs outros rumos não seriam tomados e novas conquistas não seriam concretizadas.

João Augusto Neves Pires é historiador e membro do grupo de Pesquisa em Música Popular: História, Produção e Linguagem da Unicamp e do Coletivo de Mídia Livre Vai Jão.