Apesar de a violência contra a mulher ser uma questão antiga e a Lei Maria da Penha completar, em 2016, dez anos de existência, somente agora a sociedade brasileira começa a discutir o assunto abertamente. É o que acredita Tatiane Moreira Lima, juíza da Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em São Paulo.
“É uma cultura que precisa mudar. É uma violência antiga, mas que só agora falamos dela. As pessoas precisam entender esse tipo de violência. A lei existe, as pessoas hoje têm consciência dela, mas precisamos de melhores serviços de atendimento, centros de referência e defesa da vítima, delegacias especializadas abertas 24 horas. Há um longo caminho para se percorrer”, afirma a juíza, uma das convidadas do debate sobre violência contra a mulher, realizado no dia 4 de agosto pela Associação dos Advogados de São Paulo.
Para ela, a Lei Maria da Penha tem como uma de suas virtudes o efeito pedagógico, com a intenção de interromper o ciclo da violência doméstica. Entretanto, para enfrentar e extinguir da sociedade esse tipo de agressão contra a mulher, a juíza acredita que é preciso atuar em três frentes: empoderamento da vítima, reeducação do agressor e a base escolar abordando a questão de gênero.
Tatiane defende que o próprio poder público precisa se adaptar e aperfeiçoar seu modo de atuação, para o Estado deixar de ser também um agente agressor. Atualmente, além de sofrer a violência, a vítima é depois obrigada a narrar diversas vezes o fato ocorrido, seja no Conselho Tutelar, no órgão de saúde ou da delegacia de polícia, um processo que a faz reviver o trauma.
Como se não bastasse, a falta de treinamento dos funcionários públicos desses órgãos muitas vezes a obriga a ouvir perguntas absurdas, em casos de violência sexual, como; “Você gozou?”, “Como era sua roupa?”, “Já fez sexo em grupo antes?”, “Se foi ruim, por que não berrou?”. Questionamentos que humilham e desrespeitam a mulher justamente por quem deveria estar ali para protegê-la. Abordagens que colocam em dúvida a estória da vítima ou, muitas vezes, pretendem torna-la responsável pela própria violência sofrida, seja pela roupa que usava ou por determinado comportamento.
“A violência institucional é um termo novo e de reflexão em todas as esferas. É preciso haver treinamentos, capacitações e sensibilizações. Atualmente, a partir do momento em que o juiz ingressa no serviço público, ele passa por uma sensibilização sobre a questão da violência contra a mulher. O juiz precisa entender que essa mulher não está ali porque quer, está ali numa situação de completo desespero e precisa ser acolhida.”
Segundo ela, em média, a vítima fica oito anos no ciclo da violência e só 5% fazem a denúncia após a primeira agressão. “Quando ela finalmente chega para fazer a denúncia, já foi agredida inúmeras vezes. Por isso, a pessoa que trabalha com violência tem que ser sensível”, afirma.
Na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, em São Paulo, Tatiane julga em torno de 800 processos por ano. Em 30 de março, a magistrada viu sua sala de trabalho ser invadida por um homem que, em instantes, a derrubou no chão, despejou um líquido inflamável sobre seu corpo e ameaçou queimá-la.
Durante meia hora, a juíza ficou nas mãos de Alfredo José dos Santos, que a culpava por ter perdido a guarda do filho durante um processo em que era acusado de bater na ex-mulher. O homem exigiu que ela gravasse um vídeo no telefone celular, afirmando que ele era inocente da acusação. “Senti a força das mãos dele apertando o meu pescoço, os olhos saltando, o ar faltando,” lembra, definindo a experiência como “traumática e transformadora”.
“Pude depois me colocar no lugar da vítima, com a diferença de que, na minha sala, depois havia dez policiais, enquanto a vítima costuma estar sozinha em casa com o agressor, sem ajuda nem de vizinho”, diz. Refeita da experiência, ela diz não guardar raiva do agressor, e sim compaixão. “Temos muito a mudar, estamos caminhando no processo. O ideal é que, no futuro, a Lei Maria da Penha nem exista mais e que a sociedade seja, de fato, justa e na qual todos são iguais.” (Luciano Velleda, da RBA)
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