Por Emir Sader
Mesmo sendo um governo interino; mesmo tendo sido eleito vice-presidente com um programa radicalmente diferente; mesmo adotando o programa derrotado nas urnas quatro vezes sucessivamente; mesmo colocando em prática políticas dos governos Collor e FHC, fracassadas e derrotadas nos anos 1990, mesmo com tudo isso, o governo golpista avança na reinstalação do capitalismo selvagem no Brasil.
Décadas de ditadura civil-militar e de governos neoliberais haviam instaurado no país, de forma plena, o capitalismo selvagem. Aquele que opera sem contrapesos, sem garantia de direitos, destruindo as formas de regulação estatal, jogando a massa dos trabalhadores no desamparo da ausência de carteira de trabalho e de normas de regulação das relações trabalhistas.
Aquele capitalismo em que o emprego e os recursos para políticas sociais virão como subproduto da expansão econômica, se vierem um dia.
Esse capitalismo selvagem fez do Brasil o país mais desigual do continente mais desigual do mundo. Fez do país uma presença permanente no Mapa da Fome no mundo. Fez da miséria, da exclusão e da desigualdade social um componente essencial do cenário do país, das ruas e praças, das favelas e das comunidades periféricas.
Os governos desde 2003 buscaram colocar contrapesos, limites a esse capitalismo, que somente busca a maximização dos lucros das grandes empresas.
Conseguiu recuperar a carteira de trabalho para a maioria dos trabalhadores, elevar os salários acima da inflação, distribuir renda ao mesmo tempo em que retomava o crescimento da economia e controlava a inflação.
Não somente o país se tornou menos injusto, como a economia pôde voltar a crescer, com o papel do mercado interno de consumo de massas sendo essencial como fator de indução desse crescimento.
Nas palavras de Lula, “pobre não é problema, é solução”, porque dinheiro nas mãos dos pobres não vai para a especulação financeira e sim para o consumo, fortalecendo o circulo virtuoso que gera empregos, impostos, fortalece a previdência.
O discurso e a prática econômica do golpe apelam para um diagnóstico catastrófico – que eles mesmos negam em outros momentos –, para justificar duros ajustes, cortes nos recursos públicos, privatizações, arrocho salarial, além de entrar de novo no circuito de endividamento externo.
Na Argentina, se propaga o argumento de que a população vivia acima de suas possibilidades, de que houve uma espécie de farra do consumo, de viagens, e que agora teriam que pagar o preço, mediante ajustes que afetam diretamente o mercado de trabalho, os salários e os recursos públicos para políticas distributivas.
É um discurso que se volta basicamente contra o Estado, porque é por meio do Estado que governos progressistas podem colocar limites à voracidade do capitalismo, sua busca incessante de lucros mediante a superexploração dos trabalhadores.
É por meio da ação estatal que se garantem os direitos formais dos trabalhadores, o acesso da população ao sistema educacional e aos sistemas de saúde, entre outros tantos.
Destruir a capacidade de regulamentação do Estado é a via mais direta de reinstalação do capitalismo selvagem. Daí a necessidade de desqualificar o Estado, criando no imaginário popular a associação entre Estado como agente de corrupção, de cobranças excessivas de impostos, de gastos sociais desproporcionais e despropositais, de desperdícios, de ineficiência etc.
É em torno do sentido da ação do Estado que se dá, por isso, grande parte do debate político e ideológico sobre o futuro do país e da sua democracia. (Da RBA)