Se é verdade que o diabo mora nos detalhes, o governo interino já forneceu alguns sinais de mudança não só de rota, mas de concepção. Tirou, por exemplo, a palavra “desenvolvimento” de um de seus ministérios estratégicos, o da Indústria e Comércio Exterior, acrescido de “serviços”. E em meio a uma severa crise no mercado de trabalho, nomeou para o Banco Central um economista que, refletindo uma ideia corrente em certa linha de pensamento, defende que um pouco de desemprego não é ruim para a economia. Nas medidas econômicas anunciadas pouco depois da “posse”, não trouxe tanta novidade, adotando um programa de austeridade já implementado em outros países e com resultados perversos em termos sociais.
Depois da divulgação do Produto Interno Bruto (PIB) do primeiro trimestre, feita em 1º de junho pelo IBGE, o Ministério da Fazenda saiu a público para dizer que a “implementação intempestiva” das iniciativas anunciadas pelo governo deve iniciar o processo de recuperação da economia “nos próximos trimestres”. Basicamente, o programa econômico se fundamenta em controle de gastos, ou “controle rígido e rigoroso da despesa”, como afirmou o ministro Henrique Meirelles, que inclui nesse rigor setores diretamente ligados à área social, como educação e saúde.
Medidas dessa natureza levarão não só a uma recessão econômica, mas social, avalia o professor João Sicsú, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E revelam intenções e pensamentos do governo de plantão. “O Estado tem de estar mais presente em momentos de dificuldade. Aqui, a situação é invertida. O Estado se retira, e o setor privado também”, aponta. “Além de não ampliar os gastos sociais, como já vinha sendo feito no governo Dilma, agora estão tentando comprimir os gastos.”
O economista e consultor Antonio Corrêa de Lacerda, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, concorda. “Hoje, esse discurso da austeridade vai na contramão das experiências históricas. É nas crises que o Estado tem de gastar”, afirma. Para ele, o governo Temer adotou o “mantra” do ajuste fiscal como solução para todos os problemas. E repete um erro já feito pelo ministro Joaquim Levy, no início do segundo mandato de Dilma Rousseff: fazer ajuste com a economia em baixa.
Mas é um ajuste que pega uns e não outros, observa o professor Denis Maracci Gimenez, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e diretor do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) da mesma instituição. Com o governo interino, reduz-se, sim, o papel do Estado – nas áreas de proteção social. “E mantém muito forte onde há uma maciça transferência de recursos públicos para o setor financeiro. Esse é o arranjo.”
Para ele, nenhuma das medidas anunciadas pelo governo é capaz de recuperar a economia ou garantir um sistema de proteção. Pelo contrário: “Apontam crescente fragilização de políticas públicas, num quadro de estagnação”.
Se a ideia fosse de fato recuperar a economia, não se começaria por reformas da Previdência Social ou da legislação trabalhista, mas por uma discussão de uma estratégia nacional de desenvolvimento, envolvendo bancos públicos e o setor privado, na busca da recuperação do investimento.
O governo, porém, acena com reformas. O próprio ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha, afirmou em entrevista à agência de notícias Reuters que depois da Previdência o objetivo é mirar na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “Eu não sei se aprova até o final do ano, mas a ideia é aprovar as duas até o final do ano para entrar no ano novo com uma nova perspectiva”, declarou.
Entidades empresariais, que em bom número apoiaram a mudança de governo, fazem pressão para implementar a sempre pedida flexibilização da leis trabalhistas, como “solução” para o problema do desemprego. O professor da Unicamp contesta: “Não há evidência empírica de que medidas de flexibilização do mercado de trabalho gerem emprego ou conduzam à recuperação da atividade econômica”, diz. “Neste momento, só aumentaria a falta de proteção social e debilitaria ainda mais a capacidade de arredacação fiscal.”
Ele receia que as ações deste governo aprofundem as dificuldades, que não são recentes. “Nos últimos dois anos, o país entrou em uma situação de estagnação, e isso coloca em risco os avanços sociais da última década. Não estão sob ameaça, estão indo embora, concretamente.” É o que ocorre, por exemplo, no mercado de trabalho, que sofre “uma deterioração muito rápida, muito intensa, e vai prosseguir ao longo do ano”.
Juros
Ao falar em controle de gasto público, o governo não menciona a verdadeira sangria de recursos: os juros. “O que vem degradando as finanças públicas muito rapidamente é a política monetária”, diz o economista da Unicamp. “Não há nenhum motivo que impeça a redução da taxa de juros”, afirma, lembrando que com a tendência de inflação menor, o juro real aumenta.
“Essa taxa está muito acima do nível de equilíbrio”, acrescenta o professor Lacerda. Isso dificulta também uma eventual recuperação da indústria, que atualmente convive com um câmbio mais realista. “Mas é preciso ter uma sinalização clara de que essa taxa (cambial) se manterá. O câmbio não para de pé sem seu coirmão, que é a taxa de juros.”
Segundo ele, o “ajuste” já começou a ser feito – via desemprego. “E todas as sinalizações são de redução dos benefícios, o que denota uma visão conservadora da economia, sem a visão do papel multiplicador do investimento público. Está no DNA. Buscam atacar os falsos problemas”, afirma, para quem o governo interino tem vícios de origem: “Acha normal ter juro alto, cortar investimento, ter desemprego. É uma tese superada, mas está muito presente. É aquela fé cega no mercado”.
O economista também lembra dos efeitos da Operação Lava Jato, em que pese a importância do combate à corrupção. “O problema da operação, a despeito de ser valiosa, é que no curto prazo ela travou a economia. É preciso que haja uma saída para punir os executivos e recuperar as empresas. Dizer que podem ser substituídas por empresas de fora é simplista. Não é mercado financeiro, que você troca papel por papel.”
Investimentos
Em um cálculo preliminar, Sicsú estima que se regras anunciadas pelo governo interino tivessem sido aplicadas nos dez últimos anos, o país teria gasto aproximadamente R$ 200 bilhões a menos em saúde e R$ 300 bilhões a menos em educação. Para ele, está em curso um processo de transferência de renda para o setor empresarial e financeiro.
“Não se pensa em fazer nenhuma grande política de investimento público”, diz, vendo ainda uma tentativa de “estrangular” o BNDES ao se propor a devolução de R$ 100 bilhões ao Tesouro até 2018, e lamentando a ideia de extinguir o Fundo Soberano. “Seria bastante abastecido com recursos do pré-sal.”
O pré-sal também está na mira. A tomar posse na presidência da Petrobras, em 2 de junho, Pedro Parente disse ser favorável ao fim da obrigatoriedade de investimento mínimo de 30% da empresa, dando apoio a projeto do senador tucano e agora chanceler José Serra, combatido pelos trabalhadores e por setores nacionalistas.
Mesmo o anunciado controle é, para Sicsú, mais uma mudança de composição de gastos, ao se aumentar “de forma extravagante, anormal”, a meta de déficit fiscal de R$ 96,7 bilhões para R$ 170,5 bilhões. “Duvido muito que no governo Dilma se conseguisse alterar uma meta dessa forma”, comenta o professor da UFRJ, para quem o governo, com uma meta tão larga, além de dar mais dinheiro a bancos e empreiteiras, ainda poderá posar de bom administrador fiscal.
Os três economistas concluem que o chamado rentismo continua prevalecendo no país – mesmo na gestão anterior. “Desde o governo Dilma, precisaríamos de um programa de pequenas obras, colocar mais dinheiro para os mais pobres. A economia ficaria mais dinamizada”, diz Sicsú. “Empresário não gasta nada quando a economia está desacelerando. Trabalhador de baixa renda sempre gasta.”
A soma de arrocho salarial, redução do Estado, “sequestro” do orçamento e corte em programas sociais tem como consequência o crescimento da desigualdade, interrompendo e até revertendo uma trajetória positiva verificada em período recente. Mesmo que em algum momento a economia cresça, esse processo não resultará em distribuição de renda. Será “à la ditadura”, na definição de Sicsú, lembrando que em alguns anos o país cresceu em até dois dígitos, mas para poucos. Em uma imagem conhecida da época, esperava-se o bolo crescer para então dividi-lo. Naquele momento, observa, “nunca dividiram, só cresceu”.
A culpa é do desempregado
O diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, vê na crise atual um pretexto para jogar a conta “nas costas do trabalhador”. Seja para afirmar que ele é responsável pelo desemprego, por falta de qualificação, ou para dizer que o movimento sindical não ajuda na busca de alternativas, recusando-se a aceitar a chamada flexibilização. “O emprego é resultado da dinâmica econômica”, afirmou, durante debate que reuniu as centrais sindicais justamente para debater a situação do mercado de trabalho. Em abril, a taxa nacional de desemprego atingiu recorde de 11,2%, com estimativa de 11,4 milhões de desempregados, Segundo o IBGE.
Ele lembrou que no final de 2015 centrais e entidades empresariais aprovaram um Compromisso pelo Desenvolvimento, com sete diretrizes para retomada da economia. O documento lista itens como recuperação do setor da construção civil, afetado pela Operação Lava Jato – “Estamos acabando com um dos setores estratégicos da economia brasileira” –, da capacidade de investimento do Estado e do crédito para empresas e famílias, além de políticas de promoção e proteção ao emprego.
“Não é um problema de curta duração. Levaremos alguns anos para recuperar o nível de emprego de dois anos atrás”, observa Clemente. “O diálogo é o melhor caminho.” Em documento recente, o Dieese lembra que a agenda de austeridade adotada ainda no final de 2014, antes da posse do governo Dilma, esteve longe de responder satisfatoriamente ao desafio de fazer a economia crescer e o emprego se recuperar. (Vitor Nuzzi – RBA)
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