Nos próximos concertos da OSESP – Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo que acontecem dia 30, quinta-feira, às 21h, 01, sexta-feira, às 21h, e 03, domingo, às 16h, a Orquestra apresenta o Concerto Para Violino e Violoncelo em Lá Menor, Op.102, de Johannes Brahms e a Sinfonia nº 5 em Ré Menor, Op.47, de Dmitri Shostakovich.
A regência do concerto será de Marin Alsop e como solistas Karen Gomyo, no violino, e Christian Poltéra, no violoncelo.
Mais informações pelo SITE da Sala São Paulo.
“Foi o pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) quem, certa vez, disse que cada obra é “plena de ecos e ressonâncias” de outras obras, um “elo numa cadeia de comunicação”.
É possível pensarmos em ecos e ressonâncias ao buscar referências para uma escuta atualizada — em 2016 — do último concerto de Johannes Brahms, composto em 1887. O que particulariza a peça e a difere dos outros três concertos do compositor alemão — dois para piano e um para violino — é o fato dela se destinar não a um, mas a dois instrumentos solistas: violoncelo e violino. Ao compor um “concerto duplo” em pleno Romantismo, Brahms, além de ecoar e reinventar uma prática comum no período Barroco, cria uma série de matizes para conversas musicais entre os protagonistas: algumas diretas, outras cruzadas, às vezes entrelaçadas.
O mote inicial foi colocar lado a lado o exímio violoncelista Robert Hausmann e o violinista Joseph Joachim, antigo amigo, com quem Brahms havia tido uma série de atritos à época da criação do Concerto Para Violino (1878). Com Brahms na regência da orquestra e Hausmann e Joachim nas cordas solistas, o espaço para as triangulações foi cuidadosamente articulado para a estreia do Concerto Para Violino e Violoncelo, em Colônia, em 18 de outubro de 1887.
Dialogando com a escrita de Beethoven, o Concerto de Brahms tem um início grandioso, com a apresentação de um motivo descendente de três notas: mi, ré, si (os três primeiros ataques da orquestra). Estrutura concisa, repleta de derivações. No caminho que segue, em três movimentos, o violoncelo parece sempre liderar as iniciativas. Ao violino, cabe contra- -argumentar, cooperar, ponderar.
Mas, a essa altura de seu desenvolvimento como compositor, Brahms certamente tinha outras questões a especular. Uma delas era a tentativa de conciliar, no âmbito do concerto, elementos que eram mais comuns em outros gêneros musicais, como a arquitetura e a magnitude das “sinfonias” e a sutileza e o artesanato fino da música de câmara. Em sua contribuição para o Cambridge Companion to Brahms, Malcolm MacDonald arrisca classificar o Concerto Para Violino e Violoncelo como “música de câmara para solistas e orquestra”.2 E é provavelmente no segundo movimento, o “Andante”, em meio às texturas orquestrais mais delicadas, que a síntese dessas especulações composicionais se faz mais cristalina. De certo modo, o movimento prenuncia um estilo tardio de Brahms, que enfim se manifestaria nas derradeiras obras de câmara, como o Quinteto Para Clarinete e Cordas ou as sonatas para clarinete e viola, escritas em seus últimos dez anos de vida.
Nascido menos de dez anos após a morte de Brahms, Dmitri Shostakovich, conterrâneo e contemporâneo de Mikhail Bakhtin, produziu uma extensa obra, comumente analisada à luz dos processos históricos a que o compositor esteve sujeito.
Como no Concerto de Brahms, sua Sinfonia nº 5 é estruturada a partir de um diálogo inicial de violoncelos (em naipe e reforçados pelos contrabaixos) e violinos. Também por meio de um motivo rítmico-melódico que aqui se coloca ainda mais conciso, um extenso salto ascendente de apenas duas notas (ré para si bemol), imediatamente ecoado e espelhado em sentido contrário.
Trilhando um caminho tortuoso, de enfrentamentos e recuos, sempre à sombra das pressões explícitas ou veladas do regime stalinista, Shostakovich desenvolveu, pouco a pouco, a rara habilidade de expressar, nas entrelinhas e nas camadas mais profundas de suas peças, as livres verdades musicais de sua verve mais particular.
Essa característica é evidente em sua Sinfonia nº 5, estreada em 1937. Foi sua primeira grande composição após a suposta desaprovação de Stalin à ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk (1934), que teria gerado o editorial “Confusão em vez de música” no Pravda (jornal oficial do partido comunista da União Soviética).
Em O Resto é Ruído, o crítico norte-americano Alex Ross cita uma declaração de Maxim Shostakovich — filho de Dmitri, nascido em 1938 — que apontaria conexões entre a Quinta Sinfonia do compositor russo e a de Beethoven, especialmente no que concerne ao caráter “heroico” de ambas. Mas, evidentemente, há também relações próximas com a Nona do mestre alemão: a tonalidade (Ré Menor); a posição do scherzo como segundo movimento, “Allegretto”, e não terceiro, como usualmente acontecia nas sinfonias clássicas; e a explosão triunfal do movimento final em Ré Maior (a mesma do “Andante” de Brahms).
A diferença significativa fica por conta do movimento lento, “Largo”. A travessia é longa (mais de 15 minutos), sustentada pelas densas massas orquestrais geradas pelas cordas divididas e amalgamadas em várias linhas, que vez por outra são contrapostas à transparência da harpa, da flauta e da celesta. Provavelmente, foram esses efeitos contrastantes que provocaram a tão relatada comoção geral na plateia do Grande Salão da Filarmônica de Leningrado durante a estreia. Aqui, a referência não é mais o Beethoven do início do século xix, mas os grandes adágios de Mahler, da primeira década do século xx.
O que podemos dizer, neste início de século xxi, é que, independentemente do contexto sociopolítico da época em que foi criada, a Quinta de Shostakovich se sustenta por si só, tanto pela unidade quanto pela engenhosidade das próprias tramas de seu tecido composicional. Assim como acontece com o Concerto Duplo de Brahms, a Sinfonia do compositor russo parece ter alcançado uma força expressiva que resiste e se adapta aos novos tempos, a outros lugares e pessoas.
Músicas conversam entre si, e é possível, como sugeriu Bakhtin, perceber sutis ecos e ressonâncias entre Brahms e Shostakovich, por meio de conexões com Beethoven ou Mahler. A nós cabe a justa adequação para ouvir, a busca de uma afinação interna que nos conduza a uma introspecção atenta e tranquila na relação com o som, um estado de escuta”. (SERGIO MOLINA é doutor em música pela USP, coordenador da pós-graduação em canção popular na Fasm (SP) e professor de composição no ICG/Uepa de Belém).
(Carta Campinas com informações de divulgação)