Apesar de não escrita oficialmente, a história intelectual da mulher brasileira pode ser “pinçada” em fragmentos presentes nas publicações periódicas a partir do século 19. Há 12 anos, a professora de literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Constância Lima Duarte recolhe essas peças e mostra que as primeiras publicações escritas por mulheres no Brasil foram feitas em jornais, e não em livros.
Constância levantou informações de 143 periódicos publicados entre 1827 e 1900 em todo o Brasil, do Rio Grande do Sul ao Amazonas, e destaca que muitas publicações direcionadas ao público feminino eram escritas por homens. “É incrível observar que, desde os primeiros jornais, eles têm uma perspectiva feminista, de falar de direitos das mulheres. Se a gente compreende o feminismo como a defesa dos direitos da mulher, eles eram feministas”.
Segundo a pesquisadora, o primeiro jornal nessa linha foi O Espelho Diamantino, que circulou entre 1827 e 1828 no Rio de Janeiro e trazia como ideal o direito à educação: “Pretender conservá-las em estado de estupidez, pouco acima dos animais domésticos, é uma empresa tão injusta quanto prejudicial ao bem da humanidade”, dizia o periódico.
“As meninas não tinham escola, a elite da elite tinha professoras em casa ou estudava em conventos. Então, a lei autorizando abrir escolas para as meninas no país é de 1827, no mesmo ano aparece esse primeiro jornal, O Espelho Diamantino, já voltado para essa questão da educação das mulheres. Ele se dirige às raras mulheres que eram educadas naquele momento e incentiva a educação feminina”, conta Constância.
“Os jornais são para mulheres, mas muitos discursos são para os homens, são para os pais dessas mulheres, maridos. Principalmente para os pais, dizendo que um pai esclarecido tem que acompanhar o sinal dos tempos, que na Europa as mulheres já sabem ler e podem frequentar escola, porque as nossas não? Foi uma tendência, uma coisa que aos poucos foi transformando”, diz a pesquisadora. O segundo jornal encontrado pela professora circulou em São João Del Rei (MG) em 1929: O Mentor das Brasileiras.
O primeiro em que uma mulher escrevia, apesar de não assinar os textos, chama-se Verdadeira Mãe do Simplício – A Infeliz Viúva Peregrina, de 1831. A pesquisadora destaca também O Espelho das Brasileiras, no qual aparecem textos de Nísia Floresta, considera por ela a primeira feminista do país e que foi tema de seu doutorado. A primeira assinatura de mulher em artigos, de Maria Josefa Barreto, aparece em dois jornais de Porto Alegre, por volta de 1833: Belona Irada contra os Sectários de Momo e Idade Douro.
Bandeiras feministas
Acompanhando a luta feminista pela evolução dos periódicos, Constância explica que, depois da educação, veio o direito ao trabalho. “É interessante que a Igreja, sem querer, ajudou nisso. Começou a abrir as escolas, então insistiram que deviam ser mulheres que deveriam ensinar as meninas, para evitar o contato de meninas com homens estranhos à sua família, então a primeira profissão para as mulheres foi de professora. A segunda profissão foi médica, você acredita? A mesma coisa. Mais no final do século, começa um movimento de que mulheres é que deviam olhar o corpo da mulher, cuidar de mulheres. Já tinha as parteiras, então a faculdade de medicina em 1875 abre para moças”.
A pesquisadora lembra que a palavra feminista já existia desde o século 19, mas que, assim como hoje, as publicações muitas vezes eram contraditórias, ao trazerem textos defendendo a educação ao lado de outros ensinando as moças a serem boas esposas.
“Se a gente olhar hoje nas bancas, a gente vai ver a mesma contradição. Nós temos na mesma revista um artigo, uma matéria feminista, defendendo a educação das meninas, como se deve educar hoje as meninas, falando que os pais não podem tornar as meninas inseguras, abrir os horizontes, e ao lado tem as receitas, as formas de receber, e parece que a sexualidade da mulher é toda voltada para agradar o homem.”
Sem esquecer o humor sarcástico das feministas, Constância cita dicas de comportamento para políticos e, ao mesmo tempo, uma forma de arrecadar recursos para o estado, presentes no jornal A Fluminense Exaltada, que circulou por 11 anos a partir de 1832. “Todo deputado que não estiver na Câmara na hora da abertura da sessão, ou se retirar antes de se fechar, pagará por cada meia hora que faltar 2.800 réis. Todo periódico que mentir, por cada mentira, vai pagar 200 réis. Todo periódico que caluniar ou devassar a vida privada, por cada vez pagará 40 réis. O ministro que der preferência a seus parentes e amigos vai pagar 50 mil réis por cada um.”
Constância começou a pesquisar os periódicos feministas do século 20, o que deve render dois volumes de publicação. O resultado da primeira fase da pesquisa será lançado no dia 17 de março em Belo Horizonte, no livro Imprensa Feminina e Feminista no Brasil – Século 19 – Dicionário Ilustrado.
Feminismo atual
Pesquisadora do feminismo na arte e primeira especialista em arte-educação do Brasil, Ana Mae Barbosa afirma que a evolução da luta pelos direitos das mulheres no país avançou pouco nos últimos tempos, mas ela se diz otimista com o atual cenário.
“No Brasil, a gente teve primeiro um feminismo envergonhado, depois um feminismo zangado, passou por uma fase de negação do feminismo e eu vejo uma geração agora de um feminismo afirmativo e construtivo: ‘estamos aqui, temos uma forma de pensar e agir diferente e essa diferença a gente quer mostrar. E as semelhanças também, queremos o diálogo’”.
Representante dessa nova geração feminista, a diretora executiva da revista AzMina, Nana Queiroz, explica que a iniciativa surgiu em setembro de 2015 justamente para dar espaço e voz para a mulher na imprensa, ocupando uma mídia fundamental no momento atual, que é a internet.
“Não só porque a discussão do feminismo em si é pequena, mas porque o espaço da mulher na imprensa, como colunista, é pequeno. Se você olhar os principais jornais do Brasil, nenhum deles tem 50% de colunistas mulheres. Pelo contrário, a maioria deles é em torno de 10%, 15% no máximo. Quando você começa a olhar mulheres negras, o número é ainda melhor.”
Para Nana Queiroz, essa falta de espaço se reflete na realidade que é mostrada e nos exemplos a serem seguidos “Quando você não dá espaço, pensa que são 50% da sociedade que simplesmente não têm voz. E quando você não dá voz para 50% da sociedade, você não dá voz a 50% da realidade, porque importa quem está falando. E quando você não dá voz a essas pessoas, você quebra o sonho de outras pessoas que poderiam se identificar. Por exemplo, uma menina negra, quando olha a imprensa, não vai encontrar uma mulher na qual se espelhar.”
De acordo com Nana, o feminismo é um “filho bastardo da Revolução Francesa”, já que os homens pediram liberdade, igualdade e fraternidade e colocaram nos documentos a “Carta de Direitos do Homem e do Cidadão”. “As feministas falaram ‘do homem e do cidadão não, do ser humano e do cidadão, tem que falar de mulher também’. E aí nasce o feminismo”. A diretora executiva diz que as mulheres sempre foram tratadas como crianças, mas que agora está na hora de elas ocuparem a posição de maioridade política, no mercado de trabalho, e também na área sexual. “A gente precisa ser considerada como adulto pleno, como adulto complexo, como um grupo complexo”.
“A mulher não podia receber herança, não podia votar, ela era tratada como são tratadas as crianças. Hoje em dia, a gente está chegando à adolescência, digamos. O adolescente tem certos direitos, certas liberdades, mas estão sempre tutelados ali pelos homens. Então os homens acham que as mulheres podem trabalhar, mas que são emotivas e frágeis demais, têm que ser protegidas, não podem ter muito poder na mão, que a mulher não vai ter fibra o suficiente para encarar um cargo político de responsabilidade, ela não sabe exatamente o que ela quer, que quando diz ‘não’ na verdade quer dizer ‘sim’.”(Agência Brasil/ Akemi Nitahara)