Por Thiago Basile
Quão forte é a nossa opinião sobre algo? Entre ironias, sarcasmos e ataques pessoais, está cada vez mais difícil mostrar ao outro o porquê de uma tese ser preferível em relação às demais, sobretudo em meio a um caos político.
É muito interessante como a “Retórica” de Aristóteles pode contribuir para os diversos embates, virtuais ou não, sobre nosso atual panorama político. A retórica clássica, em linhas gerais, objetiva criar discursos com finalidades persuasivas, em outras palavras, busca convencer o outro de algo.
Para Aristóteles, a retórica é neutra, e a responsabilidade do uso de suas técnicas recai sobre o orador. O professor Manuel Alexandre Júnior, na introdução da tradução portuguesa da Retórica, nos ensina que Aristóteles inovou ao dar ao argumento lógico lugar central na arte da persuasão. Porém, gostaria de destacar o jogo que há entre o “caráter do orador” e a “emoção dos ouvintes”. Se alguém que se dedica à retórica é capaz de raciocinar logicamente, avaliar o caráter do orador e perceber a influência das paixões, alguém com menos domínio pode acabar se perdendo em seu julgamento.
Vale ressaltar que as paixões são, basicamente, sentimentos capazes de alterar o julgamento das pessoas. E o exercício de estudar retórica não deve ser subestimado. Percebemos, em nosso cotidiano, como somos facilmente levados por nossas paixões: se por algum motivo eu estou propenso ao ódio, posso caçar alguns elementos na fala de um orador capazes de sustentar esse meu sentimento e minha opinião sobre algo. Se eu não sou um “bom orador”, posso falsear minha argumentação em busca do convencimento apenas por causa de meus interesses particulares. Quem nunca?
Parece-me que a nossa falta de imaginação política e de estudos sobre aprisionam nossa perspectiva sobre o mundo, apesar de toda a sua complexidade, em apenas dois lados opostos – esse seria, basicamente, o conceito de falsa dicotomia (vale acrescentar que a perspectiva polarizada nos é também bastante induzida, uma vez que ela nos torna fácil massa de manobra de interesses alheios).
Resumidamente: se você não é favor do impeachment, você é petista; se você não foi na manifestação do dia 18, você é coxinha. Ou você é petista, ou você ama o Brasil. Encarcerados nessa pobre perspectiva, possuem dificuldade em enxergar uma outra leitura da situação, como por exemplo uma mesma pessoa não defender o impeachment e ao mesmo tempo não estar de acordo com o governo do PT – elas dizem, em sua perspectiva p/b, que isso é simplesmente não ter coragem de defender o PT.
No anseio em defender o seu lado, em tempos de “eu tenho a minha opinião e você a sua; essa é minha opinião e nada vai me fazer mudá-la, pois senão as pessoas vão me achar contraditório”, muitos ainda não percebem como são as paixões as responsáveis por mover e selecionar os seus argumentos, e não a análise racional dos mais diversos argumentos a responsável pela construção de sua tese. É emblemático o exemplo do áudio vazado de Dilma. Vejamos novamente o trecho mais polêmico:
Dilma: “Seguinte, eu tô mandando o “Bessias” junto com o papel pra gente ter ele, e só usa em caso de necessidade, que é o termo de posse, tá?!”
Imediatamente, inúmeras pessoas começaram a julgar essa frase. Mas se destacam, novamente, dois polos, em relação ao trecho “em caso de necessidade”:
1) Para os “opositores do governo”, era óbvio que isso significava que Lula estava tentando fugir da prisão, uma vez que podia usar o termo caso a polícia chegasse;
2) Para os “defensores”, era óbvio que isso significava apenas um documento caso Lula não pudesse comparecer na posse oficial.
No entanto, a teoria da enunciação traz dois conceitos que podem nos auxiliar: o de pressuposto e o de subentendido. Os pressupostos são ideias implícitas em uma frase, decorrentes dela e necessariamente verdadeiras – na frase “Eu continuo debatendo política.”, o uso de “continuo” leva-nos a entender que eu já debatia política antes. Ou seja, eu consigo extrair uma outra informação irrefutável.
Contudo, os subentendidos, apesar de também ser ideias implícitas em uma frase, não são decorrentes dela e necessariamente verdadeiras. Na frase: “O debate político no facebook é muito pobre”. Alguém poderia responder: “Então você está dizendo que todos nós somos burros???”. Não necessariamente. Pode ser que a pessoa apenas quis dizer que faltou esforço, ou que há alguma força que impede as pessoas de discutirem mais, ou qualquer outra coisa. Na verdade, o que podemos afirmar com certeza é apenas que a pessoa disse que o debate político no facebook é muito pobre – todo o resto, fica por conta do ouvinte. Creio que o mesmo se aplica na frase da Dilma. Pelo áudio, apenas pelo áudio, o que se pode afirmar é que ela disse para usar um documento em caso de necessidade, todo o resto é inferência do ouvinte, uma inferência claramente determinada por sua paixão.
Deve-se ficar claro que, sobretudo em um assunto como política, não é interessante selecionar, analisar e julgar os fatos cegamente a partir de suas paixões. As paixões são tão fortes que fazem parte da estratégia de marketing de campanha política: vemos muito menos propostas e muito mais cenas do político abraçado com uma criança sob uma música emocionante. Quem leu todas as propostas do candidato que votou? Quem conhece o projeto de país do partido escolhido? Sabemos que muito poucos. Essas paixões consolidam-se tão fortemente que nos faz manipular uma série de argumentos. Com elas, portanto, vem a seletividade:
A: Olha só, a Fiesp está servindo filé mignon para os manifestantes, isso não é manifestação espontânea!
B: Olha só, a Cut está distribuindo camisetas para os manifestantes, isso não é manifestação espontânea!
Mais grave ainda:
A: Nós fomos para a rua espontaneamente, vocês precisaram servir filé mignon!
B: Nós fomos para a rua espontaneamente, vocês precisaram distribuir camisetas!
Será que nos policiamos o bastante para perceber se fazemos esses raciocínios deturpados? Esse raciocínio nos traz uma pergunta fundamental: o que eu acredito e defendo é forte o bastante a ponto de eu ter que falsear argumentos? Ora, se eu sou capaz de usar argumentos fortes e coerentes, então sim tenho uma tese forte. Até mesmo porque em argumentação não existe o que é verdadeiro, e sim o que é preferível. No caso em questão, o que é preferível para nosso país. Com consequências diretas sobre nós. Em suma, acredito que é necessário que testemos ao máximo nossos argumentos para ter a dimensão da força da nossa tese, ao invés de, a partir das paixões, caçar argumentos a nosso favor, e esquecer de outros que podem nos comprometer. É um exercício constante e difícil. Mas importante.
Importante sobretudo porque, assim, conseguimos dar um passo adiante e ver como esses processos funcionam no mundo. Ajuda-nos a escapar da falsa dicotomia e, assim, ser capaz de perceber que há um jogo político muito mais complexo que envolve inúmeros agentes, entre eles os partidos, as grandes empresas, as mídias, os outros países, todos esses agentes que possuem diversos interesses políticos e financeiros particulares em todas essas questões, o que faz do porta-voz desses interesses oradores que merecem por parte de nós, ouvintes, uma boa dose de desconfiança. Só assim podemos ver como eles fazem uso de diversas estratégias afim de nossa adesão cega. Não vejo nenhum ingênuo nesse jogo – no máximo, a gente. Por fim, cuidado: é preciso estar preparado para o exercício constante de questionar nossas teses e analisar a influência de nossas paixões sobre elas, pois esse exercício é capaz de fazer o mundo que imaginamos ruir.
Tiago,
faltou na sua análise levar em conta a existência de situações em que é necessário tomar uma decisão, assumir um lado, seja pela via da racionalidade, ou da paixão mesmo – ou até da simples adesão. Já que a discussão é filosófica, filosofemos. Contra o argumento radical de Kant, defendendo o imperativo categórico de “nunca mentir”, August Conte propõe uma situação de que você esteja escondendo um fugitivo da repressão em regime autoritário. Os agentes desse regime vêm buscar esse fugitivo. Você faz o que? Diz a verdade e entrega o fugitivo ou mente para protegê-lo? Sartre trata de objeto semelhante com seu conceito de “má fé”, expresso, dentre outros, na peça “As mãos sujas”: na resistência ao nazismo, o ativista burguês se nega a matar alguém. Não fazê-lo significa deixar que centenas de outras pessoas morram. Em casos assim, quem prefere não sujar suas mãos incorre em ato de má fé, por não assumir uma responsabilidade que lhe cabe. Wittgenstein, por sua vez, lembra que muitas vezes nos vemos em situações nas quais diferentes sistemas de ética entram em conflito, e temos de tomar uma decisão – não havendo sistema algum que dê conta de todos os conflitos possíveis. Essa decisão é individual, significa, de algum modo, “vestir a camisa”, chamar para si a responsabilidade. Em outras palavras, evitar a má fé no sentido sartriano. Sendo que essa decisão não passa somente pela crivo da razão, sem desmerecer o papel que ela pode e deve cumprir. Wittgenstein falava do risco de seguirmos “dietas unilaterais” que levam ao dogmatismo – inclusive no caso da “dieta unilateral da razão”. Sendo que há um limite para o encadeamento de razões. É aí que entra a persuasão como única alternativa possível. No caso do diálogo entre a atual presidente e o ex-presidente, o que está em jogo não é adesão ao “petismo” ou ao “anti-petismo”. Essa é uma falsa dicotomia, como você bem escreve. Mas é preciso dizer como superá-la, e isso passa por, de algum modo “vestir a camisa”. Nesse caso, é muito simples: o diálogo não poderia ter sido revelado, o que foi feito em franco desrespeito a importantes princípios constitucionais. Trata-se aqui pura e simplesmente de defender o estado democrático de direito. Há quem o ataque de modo direto, seja por interesse, por identidade de classe ou mesmo paixão relativa a princípios abstratos. Assim como há quem se deixe manipular, ingenuamente, com boa vontade mas sem espírito crítico. Mas há também os que se calam. Nas história das ditaduras, uma crítica frequente, feita sintomaticamente “a posteriori”, se dirige à tal da “maioria silenciosa”. Pois é, essa se constitui em boa parte daqueles que não quiseram se envolver, preferiram manter uma “distância neutra” ou, nos termos do que foi dito antes, acabaram assumindo a referida má-fé no sentido sartriano. Calar diante da injustiça é assumir a posição de quem a comete. Nesse caso, da divulgação do diálogo que destaquei como exemplo, significa aceitar um crime contra o estado de direito, feito por gente de dentro do aparelho de estado. Aí é escolher o que se quer e arcar com as consequências. Não há neutralidade possível, e isso precisa ser dito, a despeito de todas as faltas dicotomias que populam o imaginário contemporâneo.