Ele chegou longe na carreira, com pulso firme, para que tudo saísse do seu jeito. Ele olhava de cima os subalternos e como superior, colocava cada um em seu lugar. Atingira um posto de comando, ditava as regras para muita gente, era poderoso e tinha uma legião servil a obedecê-lo.
Aprendera a facilitar as coisas, sabia com quem ser mais severo e com quem ser mais polido, dependendo de uma rápida avaliação do potencial de causar benefício ou prejuízo que a pessoa em questão representava. Pretos, pobres e marginais, exceto em período eleitoral, não podiam prejudica-lo nem ajuda-lo, então, quando não os estava explorando, os ignorava. Perto das eleições, dizia que eles eram importantes para ajudar a limpar o país de maus políticos e outras coisas ruins. Eles precisavam trabalhar muito para sobreviver e não tinham tempo de pensar que ele já havia tido a chance de limpar o país e não o fizera, mas acreditavam que o país precisava ser limpo e o reelegiam. Depois voltavam a trabalhar muito para sobreviver, sendo explorados, mal tratados e ignorados.
Olhando de cima, do alto de seu nariz empinado, sentia os braços de seu poder se espalhando por todos os setores da sociedade e sentia-se muito bem sendo tão poderoso e superior a tanta gente.
Ele saiu do gabinete para o almoço quando João assumia seu posto de trabalho. João limpava janelas em grandes altitudes, era negro e pobre, mas diferente da maioria da pessoas de seu país, João era um homem curioso, de espírito livre, que se dedicava a pensar e aprender enquanto vivia.
O homem poderoso iniciou seus passos, nariz sempre erguido, ignorando a maioria. O restaurante ficava a três quadras.
João, sentado em sua cadeirinha, sentiu um misto de medo, respeito e outro sentimento inexplicável, quando viu aquele homem.
A cadeirinha de trabalho de João rumava para último andar, mas ele ainda pode ver o homem poderoso abraçando calorosamente um desafeto político. Gente com potencial de prejudicar devia ser lambida e não mordida.
O homem poderoso caminhava desviando de mendigos, de negros, de gays, cabeludos e gente com roupas simples.
João subia e tudo lá embaixo ia diminuindo de tamanho. Em algum tempo, o homem poderoso já era, na visão de João, a mesma coisa que todos os outros. João notou que todos, ocasionalmente, desviavam de alguma coisa.
Na altura da metade do edifício, João via milhares de pessoas iguais pelas ruas e sabia que no meio daquele contingente, havia um que tinha poder sobre todos. Notou que não era possível que o homem poderoso tivesse mesmo o poder que pensava ter sobre a vida daquela gente. Por quê, se ele não era mais do que ninguém?
Mais acima, João pensou que se cada um daqueles pontinhos resolvesse, naquele momento, voltar para suas casas e passar o dia com seus filhos, ou se todos parassem e se abraçassem, se o poderoso mandasse e ninguém obedecesse, como seria o dia seguinte? João não sabia responder, mas aquele dia, aquele agora, seria tão especial e radicalmente transformador que, lá de cima, parecia a atitude correta a ser tomada. João gostava de imaginar uma transformação radical, pois acreditava que era de uma assim que todos precisavam.
Chegando à cobertura, João ouvia o barulho do trânsito, sentia o vento no rosto, a cadeirinha balançando e uma estranha vertigem que nunca havia sentido. Viu toda a cidade, os limites da zona rural e as cidades vizinhas. Não conseguia diferenciar os poderosos dos desvalidos, os negros dos brancos, os homo dos heterossexuais, os católicos dos muçulmanos, os crentes dos ateus e nem os esquerdistas dos direitistas.
A cadeirinha parou no alto do edifício, mas a vertigem de João não passou e ele continuou subindo. Ultrapassou os limites da estratosfera e pode ver o planeta inteiro, enorme e sem nenhum vestígio de vida humana. De longe o planeta era lindo e João deixava de sentir aquele medo do homem poderoso, que não passava de mais uma das criaturas microscópicas que colonizavam aquela crosta.
João reparou bem que não havia fronteira alguma naquele planeta, mas sabia que lá embaixo pessoas morriam tentando fugir de países onde havia guerra e não eram aceitas em países onde havia paz. Isso não parecia ser paz.
A viagem continuou e o belo Planeta Azul foi ficando menorzinho, os detalhes menos nítidos, o azul virou cinza, até que a esfera se fez ponto.
João temeu estar indo longe demais, mas não era escolha dele. Se distraiu do medo quando viu que outros sóis traziam cores a muitos astros maravilhosos. Sentiu-se pertencente a algo maior do que seu planeta. Pertencia ao cosmo, vagava no universo e estava exposto a forças inimagináveis. Enxergava a si próprio maior do que a seu planta natal, que já nem podia mais ser visto.
João via galáxias vizinhas, corpos celestes desconhecidos e o seu sistema solar já era um grão de areia e se afastando. Tudo seguia uma estranha ordem a qual João não sabia explicar. Sua vida estava nas mãos daquele universo infinito e misterioso do qual ele fazia parte. Percebeu que a Terra e tudo nela vagavam no espaço exatamente como ele, ao sabor daquela organização indefinida da qual não se podia fugir, caótica, harmônica, inevitável, indecifrável e implacável que fazia o universo expandir em velocidade alucinante. Mas as pessoas na Terra se submetiam a ordens menores e ignoravam aquela.
Todos haviam sido colocados naquele planeta maravilhoso com iguais direitos à vida, comida, bebida e dignidade, todos aqueles pontinhos microscópicos tinham igual direito à felicidade, ao respeito, ao aprendizado, ao livre deslocamento, ao prazer e à liberdade. Era uma visão curta e limitada que colocava rótulos baseados em estereótipos. A ignorância e o medo tornavam a diferença, aquela rica diversidade que enobrece a espécie, algo a ser combatido sem sequer tentar ser convivido.
Os rótulos eram impostos ou auto aderidos, de modo que, por uma conveniência difícil de entender, os rotulados como ralé se sujeitavam às vontades de seus iguais, rotulados de poderosos. Os rotulados de povo faziam a vontade de seus iguais rotulados de políticos. Os rotulados de explorados entregavam suas vidas a um trabalho que garantisse o conforto dos rotulados de exploradores, até que alguém se insubordinasse, aí recebia o rótulo de marginal e era violentamente coibido, aprisionado ou morto, pelos seus iguais rotulados de defensores da lei e da justiça.
Não, na visão de João, ninguém tinha o poder nem o direito de reduzir as possibilidades que alguém adquiria quando ganhava a dádiva de estar vivo naquele planeta. Nenhuma lei criada por um pontinho perdido no vácuo poderia controlar o destino ou suplantar o livre arbítrio de ninguém. O que as pessoas recebiam dentro de si quando nasciam era fruto daquela força inexplicável da qual todo o universo era refém, logo ninguém deveria se sujeitar a ser refém de medos e ilusões criados pela imaginação fértil de seus vizinhos infantis.
A crença de que se poderia possuir alguém ou alguma coisa, a crença de se achar superior ou mais poderoso, a crença de se considerar o condutor de um rebanho, vistas da perspectiva de João, eram tão ilusórias e danosas quanto a crença de se considerar um cordeiro do rebanho. Nenhum ser microscópico, sob as vestes de político, banqueiro, magnata ou líder religioso possuía o poder que acreditava ter, e se a morte era uma certeza, a vida também era. O período a ser desfrutado naquele planeta deveria ser pautado em se valorizar e ampliar a experiência de viver, não em matar, oprimir ou entregar a vida para outro cuidar. Nenhuma indivíduo que buscasse uma sociedade equilibrada devia se acorrentar a certezas impostas por ignorantes, e agora João notava o quanto éramos todos ignorantes.
Ninguém tinha o monopólio das definições de certo e errado, bom ou ruim, verdade e mentira e não era em uma vida que teriam. A evolução da espécie, geração após geração, deveria aproximar a humanidade da compreensão de sua importância e de suas limitações. Diminuir a grandeza desta experiência por medo ou por subordinação a ordens vindas de alguém igual a tudo mundo era um desperdício de vida. Quem oprime e explora apenas acredita que tem esse direito, mas não tem. Quem se submete, apenas foi convencido de que tem esse dever, mas não tem.
João lembrou-se de um período em que se atribuía direitos divinos aos reis. Fazia muito tempo, na contagem de tempo de João, mas considerando o tempo em que aquele universo havia sido arquitetado, isso fazia apenas alguns segundos. Como ainda não havia se desvencilhado dessa ilusão, o ser humano continuava atribuindo tais poderes e direitos a políticos, juízes, sacerdotes etc. Dar tanto poder a alguém implicava em reduzir a autonomia, os direitos e a dignidade de milhões.
João se afastava da longínqua e invisível Terra à velocidade da luz e seus pensamentos não paravam, mas temeu ao ver o ponto negro que se agigantava em seu trajeto. O buraco negro dominou todo o panorama e João não tinha como lutar contra aquilo que sugava tudo ao redor.
Mas João estava submetido a leis maiores, às quais não sabia explicar…
Sentiu uma gota no rosto e a vertigem passou, minutos antes do temporal. João precisava limpar as janelas da cobertura, mas não limpou. Desceu sua cadeirinha disposto a voltar pra casa, abraçar sua família e contar sua experiência para o maior número de pessoas que pudesse.
Em terra firme, olhou o relógio e passavam-se ridículos 20 minutos desde que chegara ao topo do edifício. João caminhava sereno sob a tempestade, com uma inevitável felicidade estampada no rosto que chamou a atenção dele, o homem poderoso, que voltava do almoço debaixo do guarda-chuva. Se entreolharam e João sorriu. Não sentiu mais medo do homem poderoso, mas ele temeu a João.
João finalmente reconheceu aquele inexplicável terceiro sentimento, era a piedade. João sabia como eram fortes as grades da prisão mental, de ego, prepotência e ignorância, que limitavam a vida do homem poderoso.
João não se subordinaria mais a ele.
Se insubordinar, na visão de João, não era um desrespeito, ao contrário, era uma forma demonstrar que todos mereciam o mesmo respeito, e que as leis que os regiam eram muito maiores do que leis criadas para atender à conveniência de um ou outro. Ninguém devia se privar de viver, temendo que sua interação com a natureza, sua paixão pela vida, seu amor por seus semelhantes e pelo planeta, suas dúvidas e curiosidades e sua indignação com as injustiças pudessem desagradar a alguém mais vaidoso.
Ninguém devia impor suas verdades a ninguém, porque lá, naquele planetinha microscópico que continuará vagando pelo cosmo muito depois que a espécie humana se extinguir, ninguém tem condição de ser dono da verdade.
Em sua nova vida, João amou, pois amar era bom, e foi amor que ele trouxe de volta à Terra lá de cima. Lá de cima João percebeu que todas aquelas minúsculas criaturas poderiam viver muito bem sem dinheiro algum, mas sem amor, estavam tendo subvidas. A existência de um ser humano era muito curta, perto de tudo que João acabara de presenciar, mas era um capítulo importante na história da espécie, e como esse capítulo seria escrito era um atributo individual. João escreveu seu capítulo sem ódio, sem preconceitos e sem se subordinar ao que contrariasse seus princípios, pois a vida era rara, preciosa e uma dádiva muito boa para ser ruim.
Parabéns, especialmente pelo conteúdo, predominantemente feito de FUNÇÃO POÉTICA DA LINGUAGEM! Já mente aberta a questionamentos e alma aberta ao VERDADEIRO AMOR (pelas pessoas – as “iguais” e as “diferentes” -, pelo Planeta, por todo o Universo, por toda a Criação…) e INCONFORMADO ante tudo o que é falso, injusto, cruel e absurdamente legitimado por regras nem sempre lídimas nem bem intencionadas, o protagonista toma a sábia atitude de DAR UM BASTA, sem ódio algum, lançando mão da única arma capaz de melhorar o mundo: o AMOR INTEGRAL.
A vertigem dele me fez reviver as sensações usufruídas com a leitura do delírio de Brás Cubas, nas Memórias Póstumas. Mas a ele ainda foi possível tomar uma atitude… Machado deve estar muito feliz com você. Eu, mais ainda!
Brigado! Em paz!