marcelo camargo ag brasilA ocupação de um edifício abandonado no bairro do Bom Retiro, região central da capital paulista, é um dos raros casos de sucesso na área do direito à moradia.

Abandonado ainda em fase de construção, o Edifício União, localizado na Rua Solon, 934, foi ocupado na década de 80 e chegou a abrigar, em seus oito andares, 72 famílias, quase o dobro da capacidade máxima. No início do movimento de ocupação, havia moradores até no poço do elevador. Com o excesso de peso e as estruturas fragilizadas, o imóvel corria risco de desabamento.

Há 26 anos no edifício, a assistente de departamento jurídico Rosemeire Mori, 50 anos, conta que um antigo zelador do prédio vendia os espaços para as famílias que iam chegando. “Muitos não pagaram nada, outros pagaram valores variados. Aos poucos, foi enchendo até o oitavo andar”, diz.

Sem paredes divisórias, os oito andares eram grandes vãos-livres. Quem chegava ao local começava a construir apartamentos e quartinhos, conforme a necessidade. As condições de vida eram precárias, com muito lixo e entulho. “O pessoal que já estava morando embaixo, em vez de jogar o lixo para baixo, ia levando para cima [andares superiores]. Sem contar que tinha muita madeira da própria construção”, lembra Rosemeire.

Não havia energia elétrica, água e rede de esgoto. “Para tomar banho, tinha de ir para a varanda, o único lugar que a gente conseguiu puxar água. Tinha que tomar bem abaixadinha para o pessoal no ponto de ônibus em frente não me ver”, conta Rosemeire.

Os primeiros pontos de energia eram clandestinos. “Era um fiozinho ligado direto do poste para cá e esse fiozinho puxava vários fios, um para cada apartamento. Quase todo dia estourava o transformador no poste, os vizinhos vinham aqui xingar a gente. Desligava a luz da rua, daqui a pouco, um morador eletricista ia lá e ligava de novo. E assim foi durante alguns anos. Os vizinhos querendo matar a gente”, relata.

Segundo a cabeleireira Marlene Aparecida da Silva, 51 anos, moradora do Edifício União há 25 anos, a aparência de cortiço despertava o preconceito da polícia. “Tudo o que acontecia de ruim no bairro do Bom Retiro, a polícia vinha aqui”, lembra.

Há 26 anos no prédio, o maranhense Antônio Francisco de Lima, 61 anos, diz que nos anos iniciais havia muita confusão. “Era briga o tempo todo”, relata. Ele conta que várias pessoas chegaram no local com documentos falsos alegando serem donos do prédio. “Isso foi um alvoroço, mas fomos no cartório e descobrimos que [os papeis] não eram verdadeiros”, lembra.

Antônio diz que arrumava seus pertences toda semana, com medo de ser despejado. “Mas eu dizia, só vou no último caminhão, acreditávamos que íamos ser donos daqui”, afirma.

Com três filhos pequenos e recém-separada do marido, a paranaense Rosemeire diz que chegou no Edifício União com apenas um colchão e uma sacola de roupas. Aos poucos, o entrosamento com os vizinhos mostrou-se fundamental para a sua permanência, já que eles a ajudavam a cuidar das crianças enquanto ela trabalhava.

A escola da Legião da Boa Vontade, uma entidade filantrópica próxima ao prédio, também foi essencial ao aceitar a matrícula da maioria das crianças moradoras da ocupação, em período integral. “Era uma tranquilidade para os pais poder sair de manhã e voltar à noite sabendo que os filhos estavam bem cuidados. Isso segurou muito a gente aqui, porque se a gente muda daqui, onde ia por nossos filhos para estudar? Quem ia cuidar deles para a gente trabalhar?”, lembra. Hoje, os filhos de Rosemeire estão na faculdade.

Recomeço
A história do Edifício União começou a mudar em 2003 quando a professora de sociologia Maria Ruth Amaral de Sampaio, ex-diretora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), encontrou o prédio, em uma caminhada pelo bairro onde morava. O local virou o principal objeto de estudo do doutorado da pesquisadora. Em vez de denunciar, procurou ajudar.

O primeiro passo foi diminuir a quantidade de moradores – quando Maria Ruth chegou havia 64 famílias – para reduzir o risco de desmoronamento. Depois de várias conversas, a socióloga percebeu que algumas famílias gostariam de voltar aos seus estados de origem, no Norte e Nordeste do país. Foi firmado um acordo com a prefeitura que ofereceu dinheiro da passagem para que pudessem retornar.

Também havia casos de pessoas que perturbavam a ordem no local. “Para começar, tinha lá dentro tráfico de drogas, prostituição e, no meio disso, tinha famílias decentes, trabalhadoras. Eu fiz uma reunião e justamente as pessoas que eram as mais preocupantes do prédio aceitaram o dinheiro para ir embora. Eram 64 e ficaram 42, que moram lá até hoje”, lembra a socióloga.

Foi necessário refazer os pilares do andar térreo, que estavam corroídos, e ameaçavam as estruturas. Maria Ruth levou engenheiros e estudantes da Escola Politécnica da USP que orientaram os moradores nessa reforma. “Durante um ano, nos fins de semana, os engenheiros treinavam os moradores. Como era só fim de semana, esse projeto durou bastante tempo”, lembra a professora.

Para garantir a segurança estrutural do prédio, o oitavo andar foi demolido. O Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP havia recomendado a derrubada com urgência de uma parte do andar, que ameaçava ruir – o que foi feito pelos próprios moradores. “Eles fizeram essa reforma lá em cima, tinha uma parede mole, nós fomos tirando tijolo por tijolo, para não ter o risco de cair do outro lado. Fizemos uma limpeza geral. Descemos tudo o que tinha de lixo, deu uns quatro ou cinco caminhões de entulho, restos de madeira”, lembra Rosemeire.

Usucapião coletivo

Apesar de toda a ajuda que receberam e melhoria nas condições de vida no Edifício União, um fantasma ainda assombrava aquelas famílias: a reintegração de posse. “A gente sempre teve essa preocupação. E se a gente arruma tudo, reboca, faz um monte de coisa e daqui a pouco vem o juiz e a gente vai pra rua. A prioridade, antes da reforma, sempre foi o documento”, lembra Rosemeire.

Os moradores buscaram ajuda no Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos. Os advogados ingressaram na Justiça, em 2002, com o primeiro pedido de usucapião (o direito à posse de um imóvel pelo uso prolongado) para cada uma das famílias. Esse direito é concedido com mais garantia quando os ocupantes fazem melhorias no local e o Edifício União se enquadrava no requisito. Segundo os advogados do Gaspar Garcia, o antigo proprietário do imóvel morreu, sem deixar herdeiros.

As famílias criaram uma comissão com o objetivo de regularizar as dívidas do imóvel, como o da energia elétrica. A professora Maria Ruth colaborou com a doação das caixas de luz, e os moradores fizeram uma arrecadação para contratar um eletricista que estruturasse a parte elétrica e permitisse que cada morador tivesse sua própria conta de luz.

Os moradores foram ainda mais longe e quitaram os débitos atrasados, desde a década de 80, do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) – a dívida total foi parcelada e, atualmente, faltam 34 parcelas para quitação. As contas de água também foram regularizadas.

Em 2005, o Centro Gaspar Garcia entrou com o segundo pedido de usucapião, mas dessa vez coletivo, em nome de todos os moradores. Para alívio das famílias, dez anos depois, em 19 de janeiro deste ano, a Justiça determinou o usucapião coletivo – o único caso para um prédio inteiro no país, de acordo com Thiago.

Em 2008, o projeto venceu o prêmio Deutsche Bank Urban Age Award, oferecido pela London School of Economics and Political Science, que celebra soluções criativas e programas que beneficiam comunidades e residentes locais em ambientes urbanos. O Edifício União concorreu com 133 projetos e venceu o prêmio de US$ 100 mil.

A quantia continua depositada em uma conta bancária e será usada na reforma do próprio imóvel – a comissão de moradores ainda não decidiu se usará o dinheiro para consertar as escadas, melhorar a fachada ou instalar elevadores. (Agência Brasil/ Fernanda Cruz)