Por Célia Musilli
Nesta sexta-feira (4), Antonin Artaud completaria 119 anos. Ele continua sendo lembrado como um intelectual e artista revolucionário, cujas influências chegam ao século 21 marcando fortemente o teatro contemporâneo. Nesta data, em São Paulo, a Taanteatro Companhia estreia mais uma etapa do projeto cARTAUDgrafia, dedicado à vida e obra do poeta e dramaturgo francês, um mergulho que exigiu do diretor Wolfgang Pannek e do elenco pesquisas que extrapolam os livros e as encenações feitas anteriormente sobre a vasta obra de Artaud, composta de 23 volumes.
O espetáculo que entra em cartaz nesta sexta-feira é cARTAUDgrafia 1 – uma correspondência – que ficará em temporada no Viga Espaço Cênico até o dia 13. Depois, no dia 18, será aberta a temporada de cARTAUDgrafia 2 – Viagem ao México, título que se refere a texto homônimo de Artaud, além de outros escritos produzidos a partir de 1936 até o fim da sua vida em 1948, entre eles aquele denominado “Manifestos Revolucionários”, oriundo de uma série de conferências.
Essa mistura de teatro e revolução, arte e transformação, levou Paula Alves, uma das integrantes da companhia, a viajar pelo México atrás das pegadas de Artaud que criticava o pensamento racionalista europeu e dedicou parte de sua vida a pesquisar a cultura dos índios tarahumaras, objeto de vários textos importantes.
Paula desembarcou no mês passado na Cidade do México, sua intenção era recolher imagens para um filme longa-metragem e percorrer parte do roteiro de Artaud no território dos tarahumaras, encravado no meio das montanhas. Foi nesse local, em contato com os costumes da população, que o pensador francês se inspirou para escrever textos como Os Tarahumaras, A Montanha dos Signos e O Ritual do Peiote, entre outros, adaptados por Pannek para o segundo espetáculo da trilogia encenada pela companhia paulistana.
A mais de 2 mil metros de altura, Paula encontrou o ambiente que fez do país um dos lugares míticos do século 20. “A paisagem impressiona, encontrei pegadas indígenas fortes, entrei em contato com a cultura asteca, além de me deparar com um sincretismo que mistura mitologia e tecnologia”- conta. Ela também fala da beleza das pirâmides e das saunas de temazcal, nas quais o calor é emitido pelas pedras quentes e o vapor da água. Além disso, nestes locais, há cantos e toques de instrumentos que conferem ao ambiente uma aura ritualística, uma das marcas da cultura mexicana.
Ritual do peiote
Ao fazer esse roteiro, a bailarina que é também cinegrafista e fotógrafa, não largou a câmera. Com ela, aventurou-se naquilo que considera o mais importante na sua viagem: “a busca do corpo” no meio daquele território, tal como fez Artaud. Com o equipamento em punho, ela entrou num local onde se realizaria um ritual do peiote e no qual procurou ficar “controlada” durante parte do tempo para captar as imagens.
O peiote é um cactus encontrado desde o sul dos EUA até o centro do México, dá um fruto pequeno, no qual se encontram alcalóides – especialmente a mescalina. A planta comida em pequenos pedaços é conhecida por seus efeitos alucinógenos e utilizada pelos índios em rituais sagrados da mesma forma que a ayahuasca em regiões da Amazônia. “A experiência amplia a percepção visual, traz imagens que fazem parte do nosso inconsciente, abre as portas do que está dentro da gente, é como sonhar acordado, ao mesmo tempo em que se tem a impressão de estar muito vivo”- explica. Sem perder o vínculo com o caráter sagrado da experiência, ela procurou manter-se sob relativo controle para que pudesse registrar aquilo que Artaud definiu, segundo sua visão poética e antropológica, como o que de mais próximo se pode esperar de uma experiência teatral.
Quando participou do ritual do peiote, Paula ainda não havia chegado ao território dos tarahumaras. Só mais tarde desceu as montanhas de trem em direção ao norte, onde encontrou muita névoa por causa da altitude, ali entendeu o significado da preservação da cultura indígena guardada naquela região longínqua onde há pouco movimento e o silêncio só é quebrado pelo vento ou o barulho de alguns carros que levam serviços públicos à população.
Ela impressionou-se com o Vale dos Monges, onde viu “pedras que lembram gigantes” e sentiu ali uma “presença divina” como a descrita por Artaud em A Montanha dos Signos, quando ele fala da paisagem que percorreu a cavalo: “O país dos tarahumaras é cheio de signos, formas, efígies naturais que não parecem nascidas do acaso, como se os deuses, cuja presença aqui é notada o tempo todo, quisessem fazer seus poderes significar por meio dessas estranhas assinaturas” (tradução de Claudio Willer em Escritos de Artaud para a LP&M/ 1983).
No trem, descendo as montanhas, a bailarina falou com outros passageiros sobre sua intenção de refazer parte da rota de Antonin Artaud, mas ninguém tinha ouvido falar do dramaturgo francês, até que por obra do acaso um velho se aproximou dela e disse: “Você falou em Artaud?” Foi assim que aquela pessoa, que se transformaria em seu guia na região, contou-lhe que anos atrás o fotógrafo francês Gérard Tournebize havia andado por ali com o mesmo objetivo: refazer as rotas do dramaturgo que revolucionou a história do teatro. Levou-a então ao museu da cidade de Creel, no estado de Chihuahua, na Serra dos Tarahumaras, que faz parte da grande Serra Madre Ocidental. No museu, diante de um acervo que registra os rituais e costumes indígenas, Paula afirma que “conseguiu inspiração para construir parte do imaginário dos personagens e situações que vai interpretar nos espetáculos.”
Ela também ficou impressionada com os costumes, as roupas, as grandes alegorias que os nativos mexicanos trazem sobre a cabeça “como um espelho de quatro faces que representa os pontos cardeais.” Enfim, conectou-se intensamente com a cultura indígena, trazendo na bagagem, de volta ao Brasil, uma experiência com rituais sagrados que devem inspirar seu trabalho artístico. Ela destaca as batidas dos pés, encontradas nas danças ritualísticas, identificando-as com a ligação dos nativos com a terra e também com movimentos utilizados nas cenas dos espetáculos.
Ainda descreve o enorme significado que a caminhada tem para os indígenas que a identificam com a trajetória de uma pessoa pela vida. Da mesma forma que Paula, a coreógrafa Maura Baiocchi, os bailarinos Henrique Lukas, Alda Maria Abreu, Mônica Cristina e Patrícia Pilar Cruz também participaram de um ritual do peiote no Brasil, conduzido por um xamã do Arizona (EUA). O trabalho da Taanteatro não parte apenas de um discurso, trata-se do desenvolvimento de uma linguagem coreográfica que se integra às culturas e à natureza vertidas para o plano da arte total. Artaud decerto aprovaria o caráter da dança como rito.
CARTAUDGrafia 1 – uma correspondência – de 4 a 13 de setembro
Duração: 60 minutos. Classificação: 12 anos
No dia 4, às 22 horas, depois do espetáculo, haverá uma palestra de Peter Pál Pelbart
CARTAUDgrafia 2 – Viagem ao México – 18 a 27 de setembro
Duração: 1h30. Classificação: 12 anos
Local: Viga Espaço Cênico – Rua Capote Valente, 1323 – Pinheiros – São Paulo
Sexta e sábado 21 horas. Domingo: 20 horas
Ingressos serão vendidos na bilheteria do teatro ou pelo site (nos links abaixo) antecipadamente:
cARTAUDgrafia 1 – uma correspondência
cARTAUDgrafia 2 – viagem ao México
Música para recriar espaços
Para Gustavo Lemos, compositor que faz a trilha sonora dos espetáculos da Taanteatro Companhia, um dos maiores poderes do som é construir e reconstruir espaços. Para ele, “todos os sons carregam algo semelhante a uma impressão digital do espaço onde soaram originalmente.” Esse artifício pode ser poderosíssimo nos contextos e subtextos de uma peça de teatro. No mínimo, colabora imensamente na criação da aura de realidade, tirando os espectadores e o elenco do espaço-tempo cotidiano e transportando-os para outro universo. Com isso, o músico pretende levar às vias sensoriais as mesmas informações que lhes chegariam a partir dos espaços reais que, no caso, se recriam teatralmente. Por essa razão, ele utiliza um sistema quadrifônico, de quatro caixas de som, na trilha sonora da trilogia cARTAUDgrafia.
Mas, como a impressão digital do espaço não é o único elemento relevante em uma trilha sonora, ele acrescenta a isso informações culturais e contextuais. “No caso de cARTAUDgrafia, temos escolhido fontes sonoras comuns aos contextos vividos por Artaud: instrumentos europeus, sobretudo na primeira parte, e instrumentos indígenas na segunda. Em ambos os casos, de acordo com a narrativa dramatúrgica criada pela direção, utiliza-se sons fora deste universo para recontextualizar a realidade, criando uma espécie de buraco de minhoca que liga aquele tempo ao nosso, estabelecendo um paralelo instantâneo: é o caso dos sons eletrônicos que se somam às percussões indígenas” – explica.
A quadrifonia e as poéticas espaciais são parte dos desdobramentos dos últimos 10 anos de trabalho de Gustavo com música de cena. Atualmente, seus trabalhos apontam para essa direção e seus estudos se localizam principalmente nas áreas das Artes Visuais, mais especificamente nas Instalações Imersivas. De 2013 para cá, ele criou dois concertos eletroacústicos: um para o Festival de Itajubá de Cultura e Arte, o FICA, e um para o MIS, para a apresentação de Androgyne, também da Taanteatro, além de uma instalação narrativa reconstitutiva da obra “Experiência nº 2” de Flávio de Carvalho, para a exposição do artista organizada pelo Museu da Cidade; uma peça audiovisual mista de concerto eletroacústico imersivo e instalação visual por mapping (para a exposição Zonas de Compensação da UNESP), e seis trilhas para dança com suporte quadrifônico, sendo três da Taanteatro.