Por Guilherme Boneto
A sua mãe com certeza já lhe disse alguma vez para se por no lugar de alguém a quem você fez algum mal. Ainda na tenra infância, mesmo que sem a intenção de provocar dor, você pode ter mordido um coleguinha de escola enquanto brincavam no tanque de areia do jardim, e ao receber a advertência da professora, a sua mãe fez questão de lhe passar um sermão. “Imagine a dor que o seu amigo sentiu”, você pode ter escutado dela. “Se coloque no lugar dele!”. E você tentou imaginar qual o nível da forma mais expressiva de sofrimento, a dor, sentida pelo seu coleguinha. Talvez, depois desse episódio, você tenha demonstrado arrependimento e não tenha feito mais nada parecido.
É possível que não tenha sido com uma mordida, e talvez não tenha sido a sua mãe, mas tenho certeza que, em algum momento da vida, você foi convidado a se colocar sob a pele de outra pessoa. Isso acontece conosco o tempo todo, por pessoas que têm perfis muito dados à filantropia nas redes sociais, mas que na vida real atravessam a rua para não cruzar com um mendigo que eventualmente esteja no caminho, com os pés sujos e uma lata estendida. Estamos, ao que tudo indica, perdendo a capacidade de sentir empatia pelo próximo, um fato que, unido à tradicional incapacidade do brasileiro de raciocinar e interpretar textos, pode ser altamente inflamável. Mas jamais deixaremos de desenvolver a hipocrisia mais e mais, até o ponto de julgar em público quem faz pelo próximo muito mais do que nós mesmos, mas comete o pecado de não alardear.
O último final de semana foi multicolorido no Facebook, como você certamente notou. Segundo estimativas da rede social, 26 milhões de usuários substituíram suas fotos de perfil originais por outras cobertas com um filtro da bandeira do arco-íris, em apoio à causa LGBT, o que corresponde a pouco menos que a população da Venezuela. O estopim dessa movimentação formidável foi a aprovação, pela Suprema Corte americana, do casamento civil igualitário em todo o território dos Estados Unidos. Dos cinquenta Estados que compõem aquela federação, quatorze ainda não reconheciam a união entre pessoas do mesmo sexo, entre eles o Texas, um dos mais importantes do país e tradicionalmente conservador. Embora o sistema judiciário brasileiro tenha feito exatamente o mesmo em 2013 – passamos na frente dos Estados Unidos, viva! – o mundo festejou muito mais a aprovação da medida em território americano porque, ora, estamos falando da nação mais poderosa do mundo, cuja influência no planeta é incontestável, ainda que indesejada por muitos. Com apoio geral e irrestrito do presidente Barack Obama, os americanos festejaram – e levaram o mundo todo consigo.
Como você pode ter presumido pelo correr da leitura, eu próprio substituí a minha foto de perfil assim que consegui por as mãos em um computador. Me surpreendeu, entretanto, o número imenso de amigos e colegas heterossexuais que fizeram o mesmo, pessoas que podem até possuir amigos gays, mas que não são gays, e ainda assim manifestaram apoio à causa LGBT. Retorno aqui ao ponto com o qual iniciei esta humilde reflexão: são pessoas capazes de colocar a si próprias no lugar de outras. Não vivenciaram, mas imaginam o que é sentir medo de sair na rua de mãos dadas com a pessoa amada por temer algum tipo de agressão, ou ser vítima de homofobia no ambiente de trabalho, ou abrir uma página da internet e ver alguém se manifestando a favor do extermínio de pessoas como você, classificando-as como indignas, inferiores, pedindo sua completa marginalização. Imaginam de igual modo o que é ver um pastor fundamentalista abrir um programa de televisão dizendo que a homossexualidade é uma opção de vida, uma escolha, e não uma condição humana como a cor da pele e dos olhos. Ninguém escolhe ser gay, mas algumas pessoas, para ganhar o seu dinheiro, lhe dizem o contrário. Fica fácil cair nessa lorota quando falta capacidade de se interpretar um texto e de sentir empatia pelo próximo.
É óbvio que houve reações nos setores retrógrados da população. Muita gente comparou as comemorações à falta de sensibilidade com a fome na África, um paralelo cuja lógica eu ainda estou tentando compreender. Teve quem questionasse: “ainda pode ser hétero ou é proibido?”, o que me causou um instante de reflexão a respeito das dificuldades que certas pessoas têm em se manter heterossexuais. Ser hétero não é opção, ao contrário de ser um completo imbecil, devo frisar. E houve ainda, pasme, quem fizesse um contraponto colocando em suas fotos de perfil um filtro com a bandeira da Rússia, país que aprovou há dois anos uma das legislações mais homofóbicas do mundo – que orgulho! Como se não bastasse, tive a infelicidade de cruzar com o Facebook de um rapaz gaúcho, que no auge de sua revolta, substituiu a foto de perfil pela imagem de duas lâmpadas fluorescentes, em alusão à agressão de jovens gays com objetos parecidos, ocorrida em São Paulo há alguns anos e que, segundo relatos de pessoas próximas, segue ocorrendo com outras pessoas. Para a minha sorte, no momento em que vi a foto e compreendi o gracejo infeliz, não tinha nada no estômago e pude evitar vomitar.
O fim-de-semana foi delicioso, um momento como há tempos não presenciávamos. O gigantismo do casamento gay nos Estados Unidos causou comoção, e ter os americanos ao nosso lado nessa luta acrescenta muito à causa LGBT. Acima disso, ver a Casa Branca se tingir fisicamente nas cores do arco-íris, além do apoio de personalidades brasileiras como a presidenta Dilma Rousseff e os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso nos dá esperança de tempos melhores. São pessoas que, em algum momento de suas vidas, foram repreendidas por alguém – talvez pela mãe ao morder o colega de escola – e conseguiram fazer o saudável exercício de se colocar no lugar do outro. E é também saudável à população LGBT dar de cara com manifestações contrárias, ainda que fascistas, ainda que repletas de ódio. Nos dá a clara noção de que, apesar das vitórias e dos momentos de alegria e de paz como foi o último fim-de-semana, ainda há um árduo longo caminho a percorrer. As fotos vão aos poucos retornando à sua coloração normal, mas a luta continua.