amor e odio

Por Luís Fernando Praga

Adentraram ao templo de cara amarrada a procura do pastor Felicinaro, mas só estava o Elpídio e como a situação pedia urgência, foram com ele mesmo.

O rapaz foi o primeiro a se pronunciar, dizendo que estava ali para se separar da vaca cubana.

Antes que o pastor dissesse “só por Deus, irmão!”, a moça gritou que não passava mais nem uma noite com aquele tucano coxinha do caralho.

O pastor aguardou em silêncio enquanto se odiavam e pensou que seria mais um dia duro de ouvir ofensas entre seres humanos que defendiam partidos antes da dignidade humana. Passados alguns constrangedores minutos, falou enfim. O cartório fica duas quadras pra baixo, é lá que devem ir, mas alerto que lá, não serão tão tolerantes a xingamentos quanto eu fui aqui.

Por Deus, pastor, me perdoe, é que não nos toleramos mais e queríamos alguma luz antes de tomar essa dura decisão, disse a moça.

Irmã, Deus deve ser bem mais tolerante do que eu e o pessoal do cartório juntos e cá entre nós, deve ser quem mais está acostumado a ouvir gente fora do controle. Para o meu bem, também não vou precisar te perdoar, porque nem cheguei a te culpar. Mas se querem uma orientação, estou disposto a ajudá-los. Por que exatamente esse atrito chegou a tal ponto?

Adécio, o marido falou. É um desentendimento político, pastor, essa burra não vê que o PT corrupto acabou com nosso país!

Vilma interrompe o cônjuge e diz que quem acabou com o país foi o a direita corrupta e retrógrada que esse idiota defende.

Pastor Elpídio anota alguma coisa em um papel rasgado, entrega ao casal e vai se retirando.

Adécio apanha, lê e pergunta do que se trata.

É o endereço do cartório, vocês não querem uma orientação, já estão muito decididos e o nível de armamentos e escudos que carregam cria uma barreira intransponível para qualquer ideia que não seja uma que já tenham trazido de suas casas. Não posso ajudá-los, já que para vocês só existe uma única e imutável verdade, adeus e boa vida separados.

O casal se entreolhou, “cara louco!”, ela disse, mas e pediram juntos para que o pastor esperasse.

Ele voltou e sentou-se próximo aos dois numa cadeira dura de madeira. Bem, primeiro me contem uma coisa. Quem disse que o Brasil acabou? Não fiquei sabendo. Se ele acabou no tempo da direita, isso já faz muito tempo, qual das direitas? O Rei Dom João, o Getúlio, os militares, o Sarney? Não, o Brasil não acabou com a direita, o Brasil sobreviveu a muitas dificuldades, escândalos de corrupção, opressão, censura e mortes, porque sempre houve quem lutasse por ele. Também não acabou pelas mãos da esquerda ou pelo “petrolão”. Estamos aqui e o que nos anima a viver é ver o quanto ainda se pode melhorar e evoluir.

Ao contrário do que a inflexibilidade de vocês faz parecer, há muita gente feliz no país, muitas estruturas idôneas funcionando e muita gente cheia de esperança trabalhando e mantendo suas atividades normalmente.

Há também muita gente sofrendo, não pelo possível impeachment da Dilma ou pela permanência dela. Sofrem por pessoas como vocês, sofrem por verem amigos se odiando, por verem uma guerra se anunciando, da qual eles não querem fazer parte e nem querem que vocês façam parte.

Pastor, o senhor não vê que essa vadia é uma corrupta que encobre tudo e finge que não foi com ela, inquiriu Adécio?

Está falando da sua esposa ou da presidente?

Da presidente, pastor, claro…

Ah, então, a mim não pareceu tão claro. Não vejo dessa forma não. Vejo que existe uma corrupção instalada e uma estrutura política condescendente com a corrupção desde a colônia. Julgar quem foi o mais corrupto é um exercício de charlatanismo, pois a corrupção é velada e a tendência é que só saibamos da missa a metade. Hoje, com internet e mais apelo popular pela transparência, as coisas tendem a aparecer cada vez mais, então é inegável que haja corrupção no atual governo, como houve em todos os outros. Se é mais ou se é menos, eu não posso avaliar. Mas mesmo que seja muito mais, terá sido porque uma série de condições propiciou a execução do mal feito e não adiantará tirar um e colocar outro sem antes remover estas condições.

Está protegendo a Dilma, pastor?

Onde mesmo? Afirmei que sou contra a corrupção e contra a estrutura podre onde ela germina, não sou contra pessoas. Não sou contra vocês, sou contra o ódio que os cega e desgasta.

Você realmente acreditava que a Dilma seria a padroeira do Brasil e governasse acima do bem e do mal, não cedendo às pressões da governabilidade assim como todos os outros até hoje?

Não, pastor, nunca acreditei nela.

Fez bem. E você, Vilma, acreditava na Dilma como uma salvadora pátria?

Sim, pastor, acreditava sim.

Iludida, disse o pastor.

Idiota, disse o Adécio.

Não mais idiota que você, Adécio, que depositava a mesma esperança ilusória no Aécio, estou certo?

Depositava sim, e tenho certeza que seria diferente.

Quando deixar de odiar e olhar para a história perceberá que não seria diferente. Talvez fosse até pior.

Todos os políticos trazem em suas trajetórias, ações que contemplam uma parcela da sociedade e desagradam outra parcela. As requisições do empresariado são umas, as dos estudantes são outras e as dos favelados são outras, as da classe média são outras. O sistema político depende da polarização do seu povo e depende de criar opostos. Depende de uma base aliada que facilita as ações do governante e de uma oposição que obstrua e não permita que aquele governo consiga fazer tudo de bom que gostaria, para que, numa próxima eleição o povo possa ser manipulado novamente e que outra parcela da população possa ser beneficiada. O sistema político quer se manter e para isso depende de criar rivalidades, como um campeonato de futebol depende da rivalidade entre times e torcidas, ou o jogo perderia o sentido.

Logo, não tenho argumentos para dizer que a Dilma seja uma vaca, vadia e corrupta sem dizer a mesma coisa de tantos outros políticos. Além de não ser de meu feitio, não vejo como salvar o país na base do xingamento e gerando clima de ódio. O mesmo vale para você, Vilma, que na verdade não está buscando nada de prático para o bem do país, a não ser refutar a altura as ofensas que seu partido vem recebendo e defende-lo a qualquer custo.

Onde há hierarquia, há troca de benefícios pessoais que cedo ou tarde prejudicarão a coletividade, logo, governos e partidos são estruturas políticas complacentes e já dependentes da corrupção. Porém seus integrantes são pessoas com defeitos como eu e vocês, muitas delas com as melhores intenções.

Transferir as máculas dessas estruturas corrompidas de forma generalizada para todos os seus simpatizantes é uma visão injusta e parcial que não leva em consideração o contexto social em que vivemos, as influência que sofremos e nem a falta de opções que temos.

Parecem adoradores do bezerro de ouro odiando os que adoram o bezerro de diamante. Preferem adorar partidos ou convicções políticas à esquerda ou à direita ao invés de valorizar e incentivar o que há de bom, produtivo, inovador e belo dentro dos seres humanos.

Se vocês só conseguem enxergar no outro o que de pior existe na esquerda ou na direita, é melhor não tentarem insistir nesse relacionamento, pois continuam intransigentes e muito apegados às suas verdades.

Mas se conseguirem ainda vislumbrar no outro um ser humano complexo e limitado, mas repleto de atrativos e possibilidades, se amem, pois há muito mais a se amar do que a se odiar. Não se odiando, poderão decidir melhor, com os nervos no lugar, se querem ou não continuar dividindo suas vidas, decepções, tristezas, surpresas e alegrias e sendo qual for a decisão, será mantido o respeito às diferenças e a dignidade de ambos.

O casal se olhou envergonhado e Vilma disse que iriam tentar reconsiderar.

Elpídio agradeceu, retirando-se e colocou-se à disposição.

Antes de saírem, Adécio chamou o homem novamente e perguntou: Pastor, em sua opinião, qual a melhor opção para o Brasil se livrar da corrupção e ser um país mais justo, a esquerda ou a direita?

O pastor suspirou e voltou a sentar-se junto aos dois. Meu tataravô me ajudou muito a refletir sobre este tema, Adécio, mas ainda hoje não tenho uma resposta definitiva. Ele era de esquerda travou a vida inteira discussões acaloradas com seu irmão capitalista durante nossos almoços de domingo. Aconteceu que ambos morreram sem que um convencesse o outro. Veio meu bisavô e a história se repetiu, morreram cada qual acreditando na verdade que mais lhe agradava. Meu avô discutiu até morrer com seu irmão sobre esse mesmo tema. Meu falecido pai também e eu vi todos morrerem, pessoas a quem muito respeitei, com opiniões totalmente diversas e em nenhuma dessas gerações ninguém convenceu ninguém. Isso me fez pensar no tempo em que os homens discutiam acaloradamente, cheios de argumentos para provar se o planeta era plano ou cúbico, se era suspenso no ar por uma enorme tartaruga ou se era carregado por uma fileira de elefantes, se acabava em um precipício ou em uma cachoeira gigantesca. Foram gerações e gerações dominadas pela ilusão. Quem defendia que o planeta fosse mais para esférico era ridicularizado e muitas vezes caçado e morto.

Hoje cientistas políticos defendem ferrenhamente, cheios de argumentos, ambos os lados, como teólogos divergem cheios da certeza sobre a definição de Deus.

Isso faz sugerir que ambas possam estar equivocadas.

A corrupção no Brasil é patrocinada muitas vezes por forças externas, outros países, grandes conglomerados e não se pode isolar o Brasil do resto do mundo. Somos o mundo. Uma vertente que defenda o consumismo e estimule sempre a ter mais e gastar mais, além de ser um dos perpetuadores da corrupção, pois faz o ser humano crer que é mais importante o carro novo do que a vida do favelado, faz o homem se vender por dinheiro e faz os recursos do mundo escassearem de forma vertiginosa a custa do trabalho escravo de outros seres humanos não pode ser correta na minha opinião.

Por outro lado, uma doutrina que cria um estado forte e disciplinador, fecha fronteiras imaginárias num mundo onde nós somos apenas mais uma espécie que precisa de liberdade para evoluir e onde a hierarquia é essencial e tende a gerar ditadores, também não pode ser correta.

A terceira via parece ser a via da tolerância, da liberdade, da flexibilidade, do cooperativismo, da ausência de hierarquia, da presença de lideranças naturais que jamais se vendam por dinheiro, porque realmente entenderão que o que há de mais valioso da vida é a vida de cada ser humano. Talvez o primeiro passo seja aprendermos a direcionar melhor nossa indignação e sermos mais empáticos com nossos semelhantes. Está muito longe de chegarmos a este ponto e precisamos nos desapegar de velhas verdades, meu belo casal, mas já é um ponto visível no horizonte, não é mais uma utopia.