Por João Monteiro
Entre os inúmeros traços e comportamentos de origem pré-histórica facilmente perceptíveis em todos os brasileiros, mais acentuados, é claro, nas populações mais miscigenadas, mas presentes também nas “zelites brancas” está a constante preocupação com o olhar alheio e a irrefreável necessidade de “estar conectado” e se comunicar com os outros, mesmo quando nada há a ser comunicado.
A tendência a procurar sem descanso a coletividade e fugir da solidão desfavorece, entretanto, atividades fundamentais para o desenvolvimento da individualidade, como a leitura, a reflexão, a meditação. Não estranhei, por isso, quando viajantes franceses que por aqui foram hospedados em vários apartamentos de luxo, ficaram surpresos com a ausência de quadros nas paredes, de livros e bibliotecas.
O gosto pela vida grupal bem como outras heranças e modelos mentais “afro-tupis”, como toda moeda, tem duas faces. Uma aterradora – 60.000 assassinatos anuais – mas outra fascinante e deliciosa – nossa sensualidade, nossa “inteligência corporal”, nosso carinho “Gilberto Freiriano” que não deixam indiferentes meus franceses e que Tom Jobim exprimiu com maestria se referindo ao viver nos Estados Unidos, retratando com perfeição nosso sentimento ao retornarmos de longas estadias no primeiro mundo: “- Lá é bom, mas é uma merda; aqui é uma merda, mas é bom!” Desculpavam-nos por isso facilmente, meus amigos viajantes, o que ressentiam como frequentes invasões às suas privacidades.
Conversávamos sobre a obesidade do aparelho de estado francês, novamente sob mando socialista e eles ironizaram: “- somos o único país comunista que deu certo!” “- E nós, o único país pré-histórico tentando dar certo” repliquei. Pois nenhuma outra grande nação, candidata a potencia mundial, tem uma população majoritariamente descendente de povos anteriores à escrita.
O resultado dessa nossa extraordinária mestiçagem cultural é uma belíssima interrogação esperada pelo mundo todo. Essa maciça inseminação de usos e costumes, de comportamentos e de modelos mentais primitivos, no corpo ocidental, cristão e lusófono de nossa cultura, pode fertilizá-la e arrancá-la de seu suposto cansaço e desencanto, gerando novas bossas e mais longe ainda, lhe devolvendo o paraíso perdido há 5000 anos atrás? Ou ao contrario, nos condena a longos séculos no purgatório até nos alfabetizarmos de fato, todos, inclusive os Presidentes da Republica, os pais de santo e os jogadores de futebol?
Aquele matador norueguês ultradireitista nos apontou como prova que mestiçagem não dá certo e no mesmo dia a policia de lá que o prendeu sem dar tiros, empurrões ou safanões, humilhou o repórter brasileiro “- Está pensando que aqui é o Rio de Janeiro?”. Nenhuma voz brasileira elevou-se para defender nossa mestiçagem cultural, como se elevou para propor dialogo com os decapitadores islamitas. Mas “Visões do Paraíso” também persistem e o capital de esperanças e de felicidade angariado pelos pés dançarinos de nossos craques de futebol, nossos capoeiristas, nossos músicos, mal foi arranhado pelos 7×1, pelo petrolão ou por esse populismo de esquerda antediluviano que nos assola.
A questão não é simples, mas poderíamos trazê-la para nosso próprio dia a dia e nos perguntarmos quanto espaço e tempo concedemos ao coletivo e quanto reservamos para nossa individualidade. O filosofo contemporâneo Boris Groys costuma afirmar que “somos aquilo que fazemos do nosso tempo” e partindo dessa premissa poderíamos perguntar: Quanto tempo diário você dedica a leitura? (Internet não vale, nem twiter ou whatsapp) E a escritura? E a reflexão (sem estar lavando alface ao mesmo tempo)? Quando um amigo ou parente aparece de improviso em sua casa você lhe diz: “- Espera um minutinho que estou terminando um capitulo” ou fecha o livro e sai correndo para recebê-lo?
Se aceitarmos a colocação de Boris Groys é no cotidiano que nossas questões se resolvem. Ele gosta também de repetir que tanto quanto o jogador de futebol, o filosofo precisa treinar todos os dias. Ele tem que “exercitar seus músculos cerebrais” lendo, escrevendo, meditando. Que dizer então de um artista? Como desenvolver e nutrir nossas individualidades se passarmos 24 horas por dia tagarelando com a tribo, ao vivo e agora também eletronicamente?
De onde a perplexidade de meus franceses: “- Mas vocês nunca lêem???”
Sampa , 5 de janeiro de 2015
João Monteiro da Cunha Salgado Neto, escultor franco-brasileiro, nascido em São Paulo, em 1953. Premiado em vários concursos infantis de arte, venceu em 68 o Concurso Mundial de Esculturas na Areia, na França, e tornou-se discípulo do escultor Caetano Fraccaroli. Ingressa na Arquitetura da USP, mas prossegue sua formação em Paris e é diplomado na Belas Artes. Dedica-se integralmente às artes desde então. Dominando uma vasta paleta de técnicas, produz e expõe em diversos países europeus, colocando a questão da visualidade brasileira no centro da sua busca estética.