Rogério Pereira (foto) deu uma palestra em Campinas que foi um sucesso (deu, do verbo doar, de graça, porque eu, a organizadora do evento, não tinha um tostão para pagar pró labore).
Quem o ouviu, se encantou. E por isso, abusei um pouco mais da generosidade dele nessa entrevista abaixo. Nela, ele fala do processo de criação literária e de suas interfaces com o mundo real da produção e venda de livros.
Para quem não conhece, Rogério Pereira é jornalista, escritor e editor. É fundador e editor do jornal Rascunho, de Curitiba, o maior jornal de literatura do Brasil; autor do romance: Na escuridão, amanhã (Cosac Naify); e escreve crônicas semanais para o site Vida Breve.
1 – No mundo do produto literário atual, você identifica uma literatura mais artística, ou seja, inovadora em matéria de linguagem e de construção ficcional?
O mundo da literatura é vasto e misterioso. Para ficarmos apenas no Brasil, é possível localizar autores muito interessantes entre os jovens e os já estabelecidos com uma obra consistente. Um nome que me chama muito a atenção é o mineiro Carlos de Brito e Mello. Mas poderia citar pelo menos uma dezena de autores cujos livros habitam minha biblioteca afetiva.
2 – Em sua opinião, há uma crítica rigorosa e construtiva da literatura contemporânea brasileira?
Nos grandes jornais, acho que não. Tudo ficou muito diluído, muito rápido, com pouca consistência. Me parece que tudo virou o mercado, o grande lançamento, o grande novo autor. A cada dia, surge o novo grande autor, seja brasileiro ou estrangeiro. Mas o grande autor dura poucos dias. Em seguida, um novo grande autor toma seu lugar. E assim, a roda gira, sem saber muito bem onde vai parar. Mas há boas exceções. Há bons críticos ainda trafegando pelos jornais. E eles, de alguma maneira, equilibram o jogo entre a descoberta do novo grande autor e a crítica com mais consistência, mais lenta, sem pressa. Na academia, desconheço completamente. É um mundo cujas portas invariavelmente não abro. E existe o fenômeno da internet, onde críticos surgem a cada momento. É uma grande balbúrdia. Todos têm as portas abertas para o mundo e emitem opiniões o tempo todo. Mas desconfio de que a liberdade da internet ainda não conseguiu criar uma massa crítica consistente em relação à literatura. É muita gente defendendo ou atacando. É quase uma guerra. Mas me parece um caminho sem volta.
3 – É possível formar críticos num país de não leitores e de acadêmicos, em geral, nada envolvidos com a produção de artistas vivos?
Tudo é possível onde há presença do ser humano. Desde guerras bestiais a obras sublimes de arte. Então, tudo é possível na selva humana. A formação de um bom crítico é permanente e dificílima. Passa pela academia, mas muito mais pela formação individual de cada um. No Rascunho, despontam alguns jovens críticos, que, acredito, possam contribuir muito para a construção de uma importante massa crítica em relação à literatura contemporânea. Nem só de mortos vive a crítica.
4 – Você identifica a presença da filosofia na literatura contemporânea brasileira?
Filosofia e literatura podem gerar grandes ficções. E grandes catástrofes também. A literatura não necessita da filosofia para se construir e significar algo importante ao leitor. Mas é sempre possível identificar a importância da filosofia em alguns autores contemporâneos. Para citar apenas dois, fico com Evandro Nascimento e Marco Lucchesi.
6 – Embora a literatura não perca sua especificidade inconfundível, ela, em geral, perde terreno para o cinema cujas inovações de linguagem são constantes. Onde estão as obras monumentais da literatura contemporânea?
Temos grandes livros na literatura contemporânea brasileira. E posso me restringir apenas aos últimos 20 anos. Dois romances: Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato; e Dois irmãos, de Milton Hatoum. São livros importantíssimos e muito diferentes entre si. Quando cito estes dois, é apenas para mostrar que a literatura brasileira contemporânea produz bons livros. Basta o leitor ter a generosidade da entrega e da curiosidade. A curiosidade de cada leitor há de descortinar obras que, se não monumentais, pelo menos muito interessantes.
7 – Você escreveu muitas crônicas no tempo em que sua mãe sofria de câncer. São textos pungentes. Qual era seu estado de espírito antes, durante e depois de produzir cada crônica?
Tudo na minha vida converge para a literatura. Vivo movido pelos livros. É a minha vida possível. Então, quando minha mãe teve câncer, não tinha muitas saídas. Para ela, a quimioterapia era um fiapo de algo para se agarrar à vida. Não deu certo. Para mim, restavam a literatura, as crônicas, as narrativas sobre a morte a nos rondar. Nem a quimioterapia, nem a literatura nos salvam de nada. São apenas arbustos nos quais nos agarramos diante do abismo. Um dia, a terra cede, o arbusto morre e nós despencamos em direção ao fim. Escrever as crônicas norteavam meus dias naquela escuridão toda. Numa manhã, encontrei minha mãe morta sobre as cobertas. O câncer venceu. Restaram-me as crônicas daquele tempo e uma fotografia meio desbotada de quando minha mãe era jovem. Agora, retrabalho todos aqueles textos num romance. A literatura me dá a sensação de que algo é possível, mesmo sabendo que o arbusto não aguentará o peso do meu corpo diante do abismo.
8 – Literatura/vida/realidade – Como organizar esses elementos existenciais em um homem comum?
Tento organizar minha vida em torno dos livros. Vivo numa casa com milhares de livros. Meus filhos sempre falam para os amiguinhos “Meu pai é maluco”. Eles têm a percepção de que os livros orbitam em torno da minha vida. E isso, para eles, talvez seja um sinal de loucura. Eles têm certa razão. Mas colocar a literatura no centro da vida não é algo muito simples e prosaico num mundo em que ela (a literatura) não faz sentido. Mas o que faz sentido? Trabalhar oito horas num banco e ir pra casa assistir à novela? E, sobre sua pergunta, não acredito que existam “homens comuns”. Nunca encontrei ninguém “comum” nesta vida. Todos me parecem muito complexos. E assustadores.
9 – O modernismo brasileiro marcou gerações. Em sua opinião, há descendentes, digo, gente preocupada em transfigurar o Brasil através de pesquisa ficcional e poética?
Tem escritor preocupado com tudo. Não é o meu caso em relação a “transfigurar o Brasil”. Mas, sim, há autores em cujas preocupações estéticas está o Brasil. Dois nomes: Luiz Ruffato e Alberto Mussa.
10 – “Não confio em literatura. É preciso escrever tudo ao correr da pena, sem procurar as palavras.” (Sartre). Qual o ritmo da sua pena?
É um ritmo lento. As dúvidas guiam meus textos. Publiquei o primeiro livro (Na escuridão, amanhã) aos 40 anos, após trabalhar nele por mais de dez anos. Agora, trabalho em um novo romance. Espero concluí-lo em cinco anos. Não tenho pressa de publicar. A literatura brasileira não perde nada com a minha lentidão. Gosto da ideia de ser uma lesma numa terra de guepardos.