É incrível como algumas imagens suscitam e ressuscitam sentimentos esquecidos, que não sabemos por que deixamos de sentir. Um amigo postou na rede social uma fotografia da turma do colégio… e lá se vão 30 anos! Antes que eu me esqueça, velha é a vovozinha! Procurei me lembrar em que momento, exatamente, deram-se as minhas metamorfoses. A do bebê para a criança, a da criança para aquele quase adulto com cara de criança da foto, e a desse quase adulto para aquilo que sou hoje.
Parece que nessas transformações compulsivas a gente vai deixando pra trás umas partes desnecessárias de se carregar dali para diante, mas temo que, por uma praticidade burra, deixemos também de carregar algumas bagagens essenciais que nossa inexperiência julgava supérfluas. Revendo agora, de longe, com aquela nostalgia quase triste, noto que acabei carregando muito peso morto, preocupações descabidas e apegos equivocados, deixando à margem do caminho detalhes bem mais preciosos. Mas a vida é pródiga de ensinamentos pra que a gente não erre sempre os mesmo erros e aprenda a valorizar mais as coisas que nos fazem felizes do que as que têm preços altos.
Não tem jeito, muita coisa ficou pra trás e não volta, mas muito há de bom que se possa resgatar.
Ficaram pra trás, por exemplo, as festas de garagem em que se dançava a uma distância segura e o casal se enlaçava meio que se afastando um do outro e eu dançava com vassouras. As paixões platônicas e unilaterais ficaram pra trás, tão secretas que nem sei se foram mesmo.
Ficou pra trás a moda de menino usar permanente para ficar de cabelo enroladinho. Graças a Deus não fui adepto dessa coisa brega, preferia o estilo Xororó. Ah, e os cabelos das meninas? E como, apesar deles, nós gostávamos delas. Realmente os dias de hoje não são de todo piores.
Ficaram pra trás as aulas de educação física, onde eu sempre me destacava… me destacava dos times titulares. Ficaram para trás os jogos internos, as gincanas, as rixas entre as salas. Ficaram para trás os planos maquiavélicos, sempre frustrados, de vencer os professores no futebol.
Ficou pra trás o medo de professor bravo, das notas baixas e das advertências. Ficou pra trás o bigode austero e simpático do nosso diretor. Ficou pra trás o pesadelo recorrente de ter sido reprovado em matemática e precisar devolver meu diploma da faculdade.
Ficou na lembrança o dia a dia naquele prédio verde que ainda me aparece nalguns sonhos. O barulho do recreio, a emoção de pular o portãozinho pra ir à padaria, mais para afrontar a ordem do que para fugir do cardápio pobre da cantina. Ficou pra trás o jogo de xadrez na biblioteca, as escadarias, as paqueras de corredor, o corredor polonês, a divertida viuvinha das canelas roxas.
Nunca voltarão aquelas excursões pra Araxá, em que dávamos mostras de nossa santidade e bom comportamento com saudáveis brincadeiras no ônibus. Ficaram para trás as fotos com filmes de revelar e os vídeos de super 8. As festas do ridículo e do trocado. Os hits dos anos 80 e a infância do “Rock Brasil”. Ficaram pra trás o “eu te pego lá fora”, as brigas de meninas e os sonhos que os meninos tinham com as brigas delas. As panelinhas, a turma do fundão, os nerds (mas os originais), os brutamontes e os C.D.F.s. A lousa e o barulho do giz causando gastura nos corpos do corpo discente.
Ficaram pra trás as amizades improváveis e a chance de ter feito aquela amizade que a timidez teve medo de tentar. Ficou pra trás a chance de não ter ofendido alguém um dia e ficou pra trás a oportunidade daquele elogio. Ficou pra trás que “o carro do meu pai é melhor que o do seu pai”. Ficou pra sempre o ensinamento de que jovens saudáveis e muito próximos a nós também podem partir antes do tempo.
Pois é, tudo ficou no passado. E onde fica o passado? Bem escondido, guardado a 7 chaves, dentro de cada um. Mas, de vez em quando alguém aparece com uma chave mestra, em formato de fotografia antiga, pra mostrar que nem todo o passado tem que ser esquecido. Que as coisas que deixamos pra trás ainda estão intimamente ligadas, de várias formas, ao que somos hoje.
Trazemos o aprendizado formal, sem dúvida, mas mais do que isso, o que aprendemos com nossos erros e com os erros e acertos alheios. Trazemos admiração e o respeito pelos grandes mestres e pelas grandes amizades que mantivemos. Aprendemos que errar é bem mais natural do que sugere a nossa hipocrisia e aprendemos que tolerar é para poucos, mas devia ser para todos.
Hoje sabemos que nada é definitivo e que nenhuma mágoa deve durar mais que uma saudade. Que nenhuma angústia deve nos impedir de olhar o momento atual com os melhores olhos possíveis, pois a cada momento corremos o risco de deixar uma possibilidade única virar coisa do passado.
Aprendemos que aquilo com que nos estressamos hoje, no futuro, com uma próxima metamorfose, vai ficar parecendo coisa de criança, então pra que? Que nos fique apenas uma nostalgia boa, construtiva e a certeza de que vivemos, juntos, uma época maravilhosa que não combina com lágrimas tristes, porque, afinal de contas, boys don’t cry.