O Zeca ficou feliz ao receber mensagem da operadora, dizendo que graças à fidelidade de anos, ofereciam um plano mais adequado ao seu perfil e com direito a um aparelho moderno, smartphone, internet livre etc. Ele não tinha queixas quanto a seu velho aparelhinho, que recebia fazia ligações e só. Aliás, Zeca não achava pouca coisa poder ser encontrado e encontrar pessoas em qualquer lugar ou hora, mas ficou empolgado com a oferta e naquele dia saiu mais cedo, disposto a arrasar de celular novo mais tarde.
Era um dia quente, azul e ventoso que combinava com empinar pipas, cerveja e rir a toa. Zeca caminhava pro ponto de ônibus, que o Zeca é povão, olhando pro céu. Dois falcões se esbarravam no voo, por certo um casal namorando e Zeca pensava que isso era sinal de que a natureza não estava totalmente devastada perto da sua casa, pois onde há ave de rapina, há presa, quando deu um encontrão num rapaz que vinha em sentido contrário. Zeca se desculpou, mas o rapaz nem reparou na trombada, seguiu olhando pra baixo, dedos ágeis no celular, jogando algo que fazia um barulho chato. Zeca o acompanhou com os olhos até que não fizesse mais barulho e seguiu em frente.
Era primavera e os ipês gostavam de se mostrar em flores amarelas com fundo de céu azul. Zeca gostava dessa visão, que o distraiu até chegar ao ponto. O ônibus estava cheio. Uma moça bonita lia um livro, um senhor dormia e os demais olhavam pra baixo com as mais diversas expressões. Sorrisos, tristezas, expectativas, dores, vinganças, amores, paixões, maldades e mudanças de fases em games eram as informações que chagavam ao Zeca, vindas dos olhos baixos dos passageiros. Zeca pensou que aquele exército que olhava pros joelhos era de pessoas, apesar da semelhança com autômatos.
Um homem empolgado entrou no ônibus e gritando “Eu podia tá roubando, eu podia tá matando…”, mas seu celular vibrou e ele interrompeu o discurso para conferir o whatsapp, deu um soco na perna, xingou e desceu no ponto seguinte.
Pela janela, Zeca via a paisagem passar e já achava que era desperdício tanta flor e passarinho pra tão pouca gente ver. O coletivo freou bruscamente, mas nem todos se ergueram pra saber o que acontecera. Um atropelamento ocorrera logo à frente e a vítima se contorcia na faixa de pedestres. Não havia testemunhas para afirmar se o motorista, que agora deixava o veículo, guardando o celular, atravessara no verde ou no vermelho, pois os transeuntes foram surpreendidos no momento em que conferiam seus facebooks. O jovem acidentado, caído e gemendo, aproveitou e tirou uma “self” da cara ralada no asfalto para o instagram.
O motorista do ônibus postou o ocorrido no twitter, engatou a primeira e #partiu. O movimento de arranque fez as cabeças dos passageiros se erguerem para trás, mas já no rebote voltaram-se pra frente e pra baixo e Zeca jurou ter ouvido um “clic” que assegurava as cabeças travadas no modo smartphone.
Deixou a condução trocando um sorriso com a moça do livro. Caminhou o passeio vendo gente pobre, com feridas nos pés, cegos, mendigos e pedintes em geral e também pessoas com smartphones que não viam nada, mas ficavam a par de tudo antes dele. Sentiu o cheiro do centro da cidade e viu urubus planando como se o prazer do voo já fizesse a vida deles fazer sentido. Trombou com um senhor de smartphone e terno pretos que disse: “Olhe por onde anda! Idiota!” sem olhar na cara dele e seguiu apressado. Zeca ficou sem jeito e se desculpou, mas já era com o vento. Depois sorriu pros urubus e entrou na loja da operadora.
Pegou uma senha e aguardou alguns minutos no setor “mudança de planos”. Olhou para os lados e viu pessoas conversando com outras pessoas que não estavam ali, mas não encontrou gente conversando com gente. Pensou que o mundo evoluía rápido e que precisava dessas pessoas antenadas e modernas. Pensou que por mais que evoluísse, o mundo tinha coisas admiráveis que não dependiam da tecnologia. Pensou que as pessoas sempre poderiam se sentir melhor quando olhassem pros ipês, pras pipas, pro céu azul, pros passarinhos, para moças que leem livros nos ônibus, para pessoas que sorriem quando olham nos olhos. Pensou também que talvez o mundo precisasse, além das pessoas antenadas, daquelas que olham o mundo com seus olhos, das que ouvem os gemidos dos acidentados, das que sentem o cheiro das flores e das feridas nos pés descalços das calçadas e das que enxergam seres humanos além de seus parelhos multifuncionais. Pensou que talvez houvesse um meio termo.
A moça disse “próximo”, olhando pras unhas e Zeca dirigiu-se ao guichê. “Mudança de plano, senhor?”. Zeca entregou a senha para a atendente, “Sim, muito obrigado, já mudei” e saiu da loja, olhando pro céu e rindo a toa, com seu bom e velho aparelho velho.