A amizade é uma das maiores dádivas da vida e as amizades que fazemos, fazem as coisas fazerem sentido.
Isso vale inclusive pro Naldinho, aquele amigo que eu já não via há tanto tempo que nem lembrava por que tinha fama de chato.
Então, outro dia o Naldinho reapareceu em casa, sem avisar, meia hora antes do almoço, dizendo que não ia demorar. Eu não insisti e ele disse, “ah, já que insiste, eu faço companhia enquanto almoçamos”. Repetiu o prato três vezes e comeu cinco bifes. Lavei a louça e quando volto, encontro o Naldinho dormindo, roncando e babando em meu sofá. Eu apreciava a cena do banquinho, quando minha mãe entra pela sala, acordando o pobre do Naldinho. Ele se levanta mal humorado, tira a camisa, ruma rápido para o banheiro e ali se recolhe por 40 minutos. Sai bem humorado deixando aquele aroma peculiar pela casa.
Minha mãe puxa assunto para evitar o constrangimento. “Naldinho, há quanto tempo! Você vai bem?”. Ele diz que já faz 15 anos, que vai bem, que está namorando uma moça que parece minha mãe 15 anos atrás e pergunta se não tem algum docinho.
Minha mãe me manda comprar sorvete enquanto ela passa um café. Chamo o Naldinho para ir comigo e ele diz, “vai lá, vai lá, vou ficar aqui conversando com a sua mãe”…
Vou buscar a sobremesa questionando a vida. Volto cansado e eles param de rir quando eu chego. Minha mãe me repreende, dizendo que eu preciso convidar o Naldinho mais vezes. Ele assente com a cabeça, já de olho no pote de sorvete. Come sem dó e diz que comeu para não fazer desfeita, porque só gosta mesmo é do de passas ao rum.
Minha mãe se despede e Naldinho se prepara para partir, mas repara que vai começar a final do campeonato e que eu estou desesperado pra ficar livre, torcendo pro meu time, exercitar meu ritual quase T.O.C. de ver o jogo sozinho com minhas bizarrices, então diz que vai ficar pra me fazer companhia. Naldinho, que é um analfabeto futebolístico, mas um P.H.D. nas artes do palpite e do comentário idiota , decide que hoje vai torcer pro outro time.
Dado o pontapé inicial, Naldinho ordena que eu busque “duas loira lá pra nóis!”. Sei que a amizade é uma dádiva, mas a essa hora eu já formulava mentalmente várias frases para esculhambar o Naldinho e colocar fim a essa dádiva, porém relevo e volto com as duas cervejas. Encontro Naldinho com o controle da TV nas mãos, hipnotizado, assistindo ao filme “A Lagoa Azul”. “Porra, Naldinho, o futebol!”, digo levemente alterado. Ele me olha como um cão culpado e, meio rosnando, volta para o jogo. Já está 1 a 0 pro outro time e ele ri, dizendo que era melhor eu ver “A Lagoa Azul”. Acaba o jogo, meu time perde, a noite cai e Naldinho vai… vai ficando. Ele nunca gostou de futebol, mas diz que já sabia que meu time iria perder, que a defesa era frágil, o ataque previsível e a diretoria corrupta. “Porra, Naldinho, cala a boca!!!”, pensei de boca calada.
De repente ele diz que eu devia era pedir uma pizza para encerrar aquele dia com chave de ouro e eu digo que, se for pra encerrar aquele dia, eu peço a pizza. Pergunto qual sabor ele prefere e ele põe-se a pensar… e pensar… Em coisa de 10 minutinhos, fala, despertando de um transe, “atum”.
“Meia atum e meia marguerita, pode ser?” sugiro. “Não, não” ele diz, “inteira atum mesmo.”. “Porra, Naldinho!” penso novamente, mas me recordo que a amizade é uma dádiva e fico quieto.
Os 50 minutos de espera até a chegada da pizza, inteira de atum, o Naldinho gasta me explicando como proceder para finalmente prosperar e porque minha vida está essa bosta.
Atum não é minha preferida, mas gosto e como sem problemas, mas Naldinho encara a redonda e diz “Ih, massa fina? Gosto da de massa grossa, mas vá lá, vou comer pra te acompanhar”. Termino o primeiro, enquanto Naldinho me acompanha terminando o seu quarto pedaço.
Reparo uma espinha graúda na pálpebra esquerda de Naldinho que deixava aquele olho no modo farol baixo. Como não tinha notado antes? Naldinho começa a coçar a espinha como se estivesse disposto a arrancar olho à unha. Surge outra espinha… e outra. Então tudo parece uma enorme bola vermelha e quente, povoada por centenas de bolinhas, ainda mais vermelhas e quentes, enquanto Naldinho esfrega a cara na toalha de mesa. “Naldinho! Que porra é essa, irmão?!”. Ele diz, com a respiração dificultada, “É o atum, esqueci que era alerg…”.
O atum não fizera bem ao meu amigão. Por sorte ele elimina grande parte daquele peixe maligno no estofamento do meu carro. Chegando ao hospital, tanto a bola vermelha e quente quanto suas filhotinhas, já estão roxas, frias e Naldinho não respira mais, mas graças à presteza e qualidade do serviço público no Brasil, conseguem salvar o Naldinho. Malditos cubanos!
Recobrada a consciência, Naldinho me profere as primeiras palavras de sua nova vida, “Pô, você devia ter me alertado quanto ao atum, sacanagem!”. Ufa, era o bom e velho Naldinho.
Acho bonito como a amizade tem dessas coisas. É capaz de ligar pessoas muito diferentes por laços inexplicáveis, tão fortes e ternos que desejamos que sejam eternos. Mas porra, Naldinho, você já tá aqui há uma semana!!!