Final dos 70. Ele crescia no berço da ditadura e de uma família de trabalhadores. Seus pais, politizados, acreditavam que a classe patronal explorava de forma injusta a vida dos faziam o país funcionar, mas seus tios, politizados, eram donos de uma pequena empresa e acreditavam que os patrões eram espoliados por tributos excessivos e encargos trabalhistas, e que os trabalhadores, em regra indolentes, se aproveitavam de regalias garantidas pelo estado e atravancavam o bom andamento da nação.
Eram visões muito diferentes, mas ele respeitava seus pais e seus tios e jogava bola com os primos, como iguais. O fato de ele ser perna de pau e seu primo craque, ou de torcerem por times diferentes, não os tornava inimigos ou incompatíveis e naquele espaço de rua eles eram livres e felizes. Ele via também harmonia e diversão nos domingos de almoços em família. Vez ou outra uma discussão mais acirrada sobre pontos de vista políticos ou futebolísticos, sempre acabava sem o convencimento de ninguém e os opositores só saiam mais certos de suas certezas.
Em 1985 a ditadura, apoiada pelas forças de direita até que a queda fosse inevitável, caiu e ele viu todos felizes em sua família de classe média, alguns cheios de esperança, outros com certo receio do porvir. O Brasil voltou a conviver com algo que chamam de democracia e ele continuou jogando bola com seus primos. Alguns mudaram de time, ele não. Seus pais continuaram trabalhando e defendendo o proletário e seus tios continuaram trabalhando e defendendo os patrões.
Na primeira eleição do período pós ditadura, ele e seus pais votaram em um operário analfabeto, filiado a um partido identificado com a classe trabalhadora e ele notou que as pessoas que não votaram no operário analfabeto, usavam as palavras “operário” e “analfabeto” com o intuito de diminuir e ofender o operário analfabeto e todos que haviam nele votado, mas ele não achava que ser operário ou analfabeto diminuísse ninguém.
Foi eleito um presidente bonitão, que não veio do povo, mas soube convencer o povo a elegê-lo e seus eleitores se encheram de esperança. Ele não acreditava no bonitão, não se encheu de esperanças e até ficou chateado. Mas seu time de futebol, que era identificado com os pobres e trabalhadores, foi campeão brasileiro pela primeira vez no ano seguinte, derrotando o time identificado com as elites, pelo qual seu pai torcia e ele ficou feliz.
Então tiraram o presidente bonitão e colocaram seu reserva no lugar, dizendo que foi a força do povo que fez isso. Os jogadores que haviam sido campeões pelo seu time, logo mudaram de time, para ganharem mais dinheiro e serem mais felizes e ele não entendeu muito bem. Ele torcia para aquele time ou para aqueles jogadores?
Na outra eleição o povo achou melhor colocar um presidente que não era o operário analfabeto mais uma vez. Era um doutor cheio de diplomas e com história de lutas pela democracia e direitos humanos, então ele não achou tão ruim. Ele percebeu que sempre tinha um grupo que idolatrava e outro que odiava o presidente, desde a ditadura. Ele foi notando que as diferentes formas de pensar e as diversas escolhas, não dependiam necessariamente do caráter ou da inteligência das pessoas. Ele viu melhorias durante o período em que o doutor foi presidente, mas também viu coisas com as quais não concordava em nada. O povo em geral achou que ele tinha sido bom e o reelegeu quatro anos depois, deixando o operário analfabeto a ver navios novamente.
Foram mais quatro anos em que o seu time, que aliás era o mesmo do doutor e do operário analfabeto, vejam só, ganhou muitos títulos, que traziam uma alegria tão efêmera quanto a passagem relâmpago dos ídolos por lá.
Ele entrou na faculdade, coisa da elite naquele país, mas continuava classe média, como seus pais, tios e primos. Já formado, em 2002, foi na quarta vez em que ele votou no operário analfabeto que pode sentir aquela sensação de vencer um campeonato. Ficou feliz e teve a certeza de que agora a democracia teria motivos para se chamar democracia, mas viu tristeza na face dos que esperavam outro resultado. Naquele período de 13 anos tentando se eleger, o partido do operário analfabeto foi se transformando, a fim de poder convencer o povo de que poderia votar nele sem ter medo de ser governado por um operário analfabeto. Seu time também havia mudado e passou a receber membros que não se identificavam tanto com suas origens, mas era pra que pudessem ganhar mais dinheiro, ser mais felizes e levar o time a novas conquistas, em prol da jogabilidade.
Ele achou que o operário analfabeto não jogou tão bem quanto ele esperava, deu passes errados como ele jamais acreditara que pudesse, apesar de ter feito gols importantes, mas ele esperava mais, e o mais que ele esperava, não veio. Então entendeu que de nada tinha adiantado ele ter tido aquela certeza que teve quatro anos antes.
Na eleição seguinte, resolveu mudar de time, politicamente, pois não viu correspondida à altura a esperança que ele havida depositado no operário analfabeto e em seu partido, mas aí já não tinha mais tanta certeza de em quem votaria. No futebol, notava que seu time de pobres, só vinha enriquecendo, ganhando muitos títulos, mas parece que a alegria dos títulos ia ficando menor, pois soube de coisas envolvidas no futebol que ele não sabia. Seu time foi campeão nacional novamente no ano em que um árbitro admitiu ter interferido ativamente no resultado das partidas para beneficiar apostadores.
Ele entendeu que jamais saberia de todas as coisas ilegais que se passavam no futebol e nem na política, pois a transparência não era interesse daqueles que tem medo que o povo descubra o que eles fazem às escondidas. Viu que as informações eram manipuladas por interesse dos poucos que dominavam o poder de agradar a grande mídia e iludir o povo.
O partido do operário analfabeto continua no poder até hoje e ele considera tamanha continuidade um perigoso retrocesso. Está representado por uma mulher na presidência, o que ele considera uma feliz evolução. Ele já não tem mais times na política, só admira mais, um ou outro jogador, pois viu que os times, na ganância de ganhar campeonatos, vendem sua identidade e ideologia.
Ele continua na classe média e não reclama da vida, pois a vida o fez pensar de forma independente. Ele acredita que a vida está melhor para a maioria, que hoje pode ter e fazer mais do que podia antes. Ele continua dizendo as palavras, “operário” e “analfabeto” sem a menor conotação pejorativa. Mas ele vê pessoas odiando e ridicularizando quem vote de maneira diferente delas. Ele vê pessoas odiando políticos colocados no poder por quem pensa de forma diferente delas. Ele vê pessoas depositando todas as esperanças na próxima eleição. Ele vê políticos no poder, tão poderosos hoje, quanto o eram no tempo da ditadura.
Ele não vê mais no voto uma arma com grande potencial transformador. Ele hoje entende que qualquer um que seja eleito, para conseguir esse feito, já precisa estar afeito a como as coisas funcionam lá em cima e distanciado da forma como elas funcionam aqui em baixo. É como plantar, num terreno adubado de mentiras, regras injustas e segredos sujos, um ser humano já preparado para trabalhar por interesses que há tempos deixaram de ser do povo. Alguém que passou a acreditar que o povo não pode ficar sabendo de tudo.
Mas ele crê que o povo precisa ficar sabendo de tudo sim. Ele crê que a grande transformação virá das ruas, mas ele não perdeu totalmente a esperança no voto ou nos políticos, porque eles, antes de políticos, são humanos e é nos humanos que ele mais deposita as esperanças. Ele acredita que votando em alguém que não tenha ainda se viciado no jogo de enganar, manipular, omitir, deturpar e polarizar, estará prestigiando humanos comprometidos com valores maiores do que o dinheiro. Estará dando a oportunidade para que opiniões contrárias a regalias e comprometidas com reformas políticas profundas e a sustentabilidade do planeta, ganhem espaço na mídia e possam clarear as ideias do povo.
Ele crê que patrões e empregados, antes de rivais, são seres humanos que deviam perceber as carências coletivas que só acrescentariam ganhos a ambos e pelas quais eles jamais lutaram. O real benefício de um, jamais poderá representar o real prejuízo do outro. Não há, matematicamente, como acumular ao máximo os escassos recursos do planeta, sem estar retirando recursos básicos à sobrevivência de outros. Não há como estar acima da lei e acumular bens e privilégios, num planeta onde pessoas morrem de fome e de doenças miseráveis, sem ostentar e se tornar um saqueador injusto, mas é o que os políticos tem feito há séculos na maioria dos países, é o osso que eles não querem largar e é o que os novos políticos, em sua maioria, têm buscado.
Os políticos, talvez os mais iludidos de todos, precisam entender que nada os distingue do povo e que a ganância por manter seus privilégios absurdos à custa da desinformação, do roubo, dos conchavos que criam rabos presos e de polarizar pessoas sob a forma de deuses e demônios, só mantém desigual uma sociedade onde as diferenças não deveriam desigualar nossas essências. Cria um povo hora mais, hora menos insatisfeito, dividido entre a situação e a oposição, mas que sempre sentirá um desconforto constante por viver cercado de inimigos, por ter que odiar a outrem para que ele não prospere em seu lugar, porque prosperar e ser feliz, nos moldes de hoje, implica em tirar de alguém para ter o seu.
Mas para ele, o ser humano próspero é o que tem amor pelo seu semelhante e só quer a dignidade e a liberdade para todos. É o que busca sentir, de novo, a felicidade existente naquele pedaço de rua em que jogava bola, livre, com seus primos, mais do que possuir o Maracanã para si. Ele luta para mostrar que a liberdade é o que faz o ser humano realmente feliz e que, diferente do dinheiro, pode ser distribuída abundantemente a todos sem ter que tirar de ninguém. (Luís Fernando Praga)