Por Julio Mangussi, especial para o Carta Campinas
Imagine uma mulher ser atacada por uma multidão furiosa, ver a sua casa ser incendiada e, após sofrer toda essa violência, ainda ser presa; o crime que ela cometeu para receber tudo isso? Amar. Sim, apenas isso. A história pode parecer surreal, ficção ou de um tempo muito distante, mas não é. Tudo isso está acontecendo em 2014, em Uganda, país localizado na África oriental. A vítima é apenas um exemplo de como ser homossexual no país africano tem sido sinônimo de viver em um verdadeiro inferno.
Com um intenso apoio de líderes evangélicos e missionários americanos, a polêmica lei antigay, promulgada em fevereiro, já está surtindo efeito. Desde então, a violência contra a comunidade LGBT (gays, lésbicas, bissexuais e transexuais) cresceu cerca de 750%, segundo um relatório publicado, em maio, pelo SMUG (Minorias Sexuais Uganda) e a Equipe LGBT de Segurança Nacional.
Suicídios, torturas, sequestros, prisões, linchamentos, demissões, chantagens, ordens de despejo, perseguição da mídia, o documento revela uma realidade aterrorizante. Em abril, um adolescente de 17 anos não aguentou a cruel pressão e se suicidou ao ingerir veneno de rato. O relatório registrou 162 incidentes desde que a lei foi aprovada pelo parlamento, um crescimento abrupto se comparado com anos anteriores: no ano inteiro de 2013, foram notificados oito incidentes, já em 2012, 19. O relatório alerta ainda que esses números sejam, provavelmente, apenas a ponta de um iceberg, uma vez que grande parte das agressões e intimidações não são relatadas e notificadas.
Segundo a diretora executiva da ONG Freedom and Roam Uganda (FARUG), que defende a igualdade e os direitos dos ugandenses LGBT, Junique Wambya, em entrevista ao Carta Campinas, a homofobia no país piorou muito este ano. Um dos principais motivos é de que grande parte da população apoia a lei antigay. “A reação geral do público tem sido a de agradecimento ao parlamento e ao presidente por ter sancionado a lei. Recentemente, para comemorar, aconteceu uma grande celebração apelidada de Ações de Graça. Até prêmios foram concedidos ao presidente e ao autor do projeto de lei”. Alguns críticos acreditam que o apoio massivo teria incentivado ainda mais a posição homofóbica do governo, que busca camuflar diversos problemas sociais e econômicos do país. “O governo usa essa questão (adesão à homofobia) para fugir de problemas reais que afetam a população em geral”, completa a diretora.
Na perspectiva do parlamentar David Bahati, idealizador da lei, a nova legislação defende a família africana, resguarda os valores tradicionais e religiosos do povo de Uganda, além de proteger as crianças e adolescentes contra abusos e desvios sexuais. Promulgada pelo presidente Yoweri Museveni (no poder desde 1986), ela chega a punir com prisão perpétua as pessoas que tenham comportamentos homossexuais “com agravantes”- a ideia inicial era a pena de morte. Além disso, se aplica também àqueles que não delatam um homossexual ou promovem a homossexualidade – afetando grupos e pessoas que defendem a comunidade LGBT.
Evangélicos americanos promovem a homofobia
O apoio massivo à lei antigay está relacionado a um conservadorismo cristão e a fragilidade social e econômica da população. Carentes de uma boa estrutura, os ugandenses buscam, em cada esquina, a esperança de uma melhora de vida. Vulneráveis, muitos a encontram nas palavras dos pastores que, em seus cultos, pregam a teologia da prosperidade. A doutrina defende que os fiéis estão destinados à riqueza e à felicidade, desde que demonstrem fidelidade e generosidade em suas ofertas a Deus. “O evangelho dá esperança e, infelizmente, eles pensam que por se livrar ‘de maus homossexuais’, a situação vai melhorar”, explica Junique.
Entre os religiosos, é possível encontrar muitos missionários evangélicos americanos. Para eles, os homossexuais não têm lugar no paraíso. Com o intuito de “salvar” os africanos, difundem uma ideologia fundamentalista que prega que pessoas LGBT ameaçam a sociedade e o estilo de vida proposto pela bíblia. A presença dos religiosos é muito grande e não se restringe apenas aos cultos. “Há uma enorme influência religiosa sobre a lei antigay, existe uma linha muito tênue entre religião e Estado, em Uganda. Isso torna difícil para nós. A batalha entre a comunidade LGBT e os fanáticos é grande, é uma luta política, e estamos perdendo terreno para eles a cada dia que passa.”, conta Wambya. Legalmente, o país é considerado laico.
Ex-colônia britânica e com 85% da população cristã – entre católicos e evangélicos-, Uganda já criminalizava a homossexualidade desde o seu período colonial. Porém, a situação piorou ainda mais nos últimos anos. Pobre e repleto de problemas sociais, o país atrai inúmeros missionários, sobretudo dos Estados Unidos. Em 2009, um grupo de pastores americanos ministrou diversas palestras atacando os gays. Entre eles, estava Scott Lively, autor do livro A Suástica Rosa: Homossexualidade no Partido Nazista, em que sustenta que os homossexuais foram a principal força por trás de muitas das atrocidades nazistas.
Ódio patrocinado
A forte pressão que os fanáticos americanos exercem no país fica clara no documentário God loves Uganda (ou Deus ama Uganda), dirigido por Roger Ross Williams. O filme expõe como missionários e lideres evangélicos locais tentam mudar a cultura africana com valores importados dos Estados Unidos. Longe de ser um fenômeno local, essa intolerância é potencializada por missões evangelizadoras, como a International House of Prayer, uma enorme organização americana que escolheu Uganda como porta de entrada para espalhar sua doutrina no continente.
A homofobia também seria exportada, diretamente, por políticos americanos. Escrito pelo jornalista e escritor americano Jeff Sharlet, o livro A Família revela como a direita conservadora cristã opera, muitas vezes secretamente, para disseminar as suas teorias religiosas e políticas, nos EUA e no mundo. De acordo com o autor, o tradicional grupo político-cristão, ao qual pertencem diversos membros da elite política americana, também atua em Uganda, capacitando e enviando recursos econômicos para diversos líderes do país, como o presidente Museveni e o parlamentar David Bahati.
Jornalismo assassino
“Enforque-os” ordenava o tabloide Rolling Stone aos seus leitores. O título medieval foi destinado a dezenas de homossexuais. Dito pelo jornal como os mais proeminentes, eles tiveram fotos, nomes e endereços revelados na reportagem. O resultado foi fatal para David Kato, um dos principais ativistas gays da África, morto a marteladas dentro de sua casa, em 2011.
Três anos depois, na mesma semana que o governo sancionou a lei antigay, a caça às bruxas recomeçou. O jornal Red Pepper publicou uma lista dos “200 maiores homossexuais do país”. Com a manchete de “Expostos” na capa, o tabloide também divulgou fotos e nomes de supostos homossexuais, entre ativistas LGBT, e até mesmo um padre católico.
Muitos simpatizantes da lei – e da homofobia nos países africanos- defendem que a homossexualidade é um comportamento imoral importado do Ocidente. Mas, segundo sociólogos e pesquisadores, essa retórica é infundada. Dois estudos pioneiros, Boy Wives and Female Husbands, escrito por Stephen O Murray e Will Roscoe, e Heterossexual Africa, de Marc Epprecht, desconstroem a ideia de que não existia gays na África antes da colonização dos países europeus. Os livros oferecem pesquisas, nas áreas da antropologia e história, além de amplas evidências de fontes etnográficas e literárias.
Muita luta e esperança de dias melhores
A batalha contra a homofobia é intensa no mundo inteiro. Assim como em Uganda, no Brasil não é difícil de encontrar pastores em programas de TV ou políticos que defendam a bandeira dos “bons costumes” e da dita família tradicional. No país com a maior parada do orgulho gay no mundo, morre uma pessoa LGBT a cada 28 horas, de acordo com um levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB). O documento contabilizou 312 assassinatos em 2013, com um crescimento de 14,7 % na quantidade de mortes nos últimos quatro anos; Pernambuco e São Paulo são os estados mais violentos. Se a situação já é alarmante no Brasil, na África piora cada vez mais: atualmente, dos 54 países africanos, mais de 30 já possuem leis antigays
Em Uganda, ser homossexual significa que você pode sair de casa e não voltar vivo. Excluídas da sociedade, as pessoas LGBT vivem marginalizadas, em um submundo desumano, sem trabalho, sem comida, sem dignidade, repleto de medo e insegurança. Além da incansável violência, serviços de saúde têm sido negados, até mesmo tratamentos contra o HIV. Em abril, sob o pretexto de estar recrutando homossexuais, policiais invadiram um centro de investigação sobre a AIDS na Universidade de Makerere, em Kampala, capital do país.
Alguns tentam se refugiar em países próximos, já outros, mesmo perseguidos, não desistem de defender os seus direitos. Mas apesar do combativo e corajoso movimento – em anos anteriores conseguiram, com muita luta, realizar paradas do orgulho LGBT -, a situação piora e a esperança diminui a cada dia. “A menos que os fundamentalistas religiosos parem com a sua perigosa agenda homofóbica e passem a pregar o amor e a tolerância com as pessoas LGBT, uma vida menos infeliz para os homossexuais de Uganda está longe de ser alcançada”, lamenta Wambya.
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