Vi(olência) na Vi(ra)da

Fui a São Paulo, outro fim de semana, para um curso que me ocuparia de sexta-feira pela manhã até o domingo à tarde e gostaria de partilhar com o leitor a mágica experiência que vivi, podendo participar da virada cultural.  Foram vários shows, para vários gostos e tribos, rolando em vários palcos por 24 horas ininterruptas.

No sábado, durante o curso, smartphones em mãos, não nas minhas, que eu não tenho condições, mas planejamos, eu e quatro amigas, assistir à apresentação da Vanessa da Mata. Seria no palco Júlio Prestes, perto da Praça da República. Sentindo a insegurança que exalava das colegas, provincianas do interior, pela necessidade de se locomover numa grande metrópole, assumi a postura de líder que me é peculiar, dizendo meu original jargão, “não tema, com Luís não há pobrema” e “eu sei chegar lá fácil fácil!”. Claro, eu não sabia, mas elas acreditaram.

Acabada a aula, caminhamos até o metrô, elas, Carina, Fátima, Michelle e Thaísa,  me seguindo confiantes e despreocupadas. A República ficava a 5 estações de onde estávamos, e foi simples contar 5 estações. Entretanto, por um descuido comum a qualquer grande líder, peguei o metrô no sentido contrário e não me dei conta, até que na quinta estação a mocinha que fica falando o nome das estações disse: “Estação… … … … VilaMatilde”.

Disse, em tom seguro, “é aqui!” e descemos. Fiquei feliz que o show da Vanessa era só à meia noite e ainda eram 19h30. Também porque descemos no meio do reboliço de outro show. Multidão e barulheira era tudo que eu precisava naquele momento para pensar o que fazer. Ficar ali mesmo e depois dizer que a Vanessa era uma tratante que tinha dado o cano na virada cultural foi cogitado, mas depois de 5 minutos, não conseguia mais ouvir o “D.J. Valds-Ney e as Potranca”, um som para o qual me faltam palavras que descrevam. Falei, olhando no meu celular (que, quando muito, faz ligações), como se fosse um smartphone: “ih, parece que mudaram o show de lugar, vamos ter que andar um pouquinho”.

O amontoado de gente não acabava, pois havia um show diferente a cada 50 metros. No meio do tumulto, um rapaz animado me passou uma garrafa pet de 2 litros com um líquido azul celeste que eu julguei ser kissuco de corante e talaguei meia garrafada. Diliça! Mas acho que não era. Em pouco tempo o componente azul da poção sentiu uma forte atração pelos meus frágeis neurônios e se mostrou um potente modificador de consciência cerebral. Foi aí a primeira ocorrência violenta da noite. Enquanto uma jovem tatuada entregava uma flor a um guarda, bem ali na minha frente, vi a globalização, onde milhares de crianças africanas morriam de subnutrição, para manter outros poucos seres humanos como elas comendo seu nobre filé mignon. Fiquei nauseado com tamanha desigualdade e perdi todo o ânimo para o restante da noite, mas as meninas me chamaram, lembrando que estávamos lá para nos divertir, então fiz vistas grossas e voltei a caminhar.

Depois de alguns metros menos densamente povoados, vimos mais tumulto, corre corre, gente gritando, polícia e fumaça de gás lacrimogêneo. Preocupado com o bem estar das garotas, notei a presença de um homem da lei, o Ten. Hildo Carabinol, que urinava e ria sozinho apoiado numa placa de trânsito e inqueri qual o significado daquela balbúrdia, ao que ele respondeu: “relaxa e curte o Bob Marley, irmão!”. Mais tranquilo, segui a orientação policial e caminhei por entre aquela gente feliz. Era a tribo do reggae. Não era gás lacrimogêneo, era hilariante, que, potenciado ao elixir azul, transportou-me a um outro plano astral. Parece que nessa hora, Carina pressentiu algum desenrolar indesejado, disse que tava tarde e infelizmente voltou sozinha pra casa. As outras inocentes criaturas me acompanharam.

Não nos detivemos ali por muito tempo que não gosto dessas coisas. Segui rumo ao palco objetivado flutuando nas nuvens e na batida do reggae, mas o chão, teimando em acompanhar meus pés, colocou em meu caminho uma pequena falha no calçamento, uma discreta depressão, um buraco, uma loca, uma maldita cratera onde caberia bem justinho, a metade direita do meu pé direito. A metade esquerda ficou lá em cima, bela e formosa, enquanto a bolinha do meu tornozelo (o maléolo lateral direito, muito prazer), tocava o fundo do poço. Não vou negar, gritei como quem tivesse soltado a franga e caí como quem leva um tiro na nuca. O maléolo latejou e acho que quebrei uma costela. Minha face esquerda ficou muito feia, como é o natural dela mesmo, mas a direita parecia ter passado por um tratamento de peeling facial com lixadeira industrial.

Me levantei rápido para ninguém notar e já de pé, vi que não fora rápido o bastante. Uma rodinha de pessoas com a mão na boca me olhava assombrada. Minha amiga Michelle chorava de pavor. Thaísa e Fátima ficaram gargalhando. Um polícia perdidão olhava pra copa de uma árvore perguntando o que é que tinha caído e dizia que, pelo barulho, parecia jaca.

Não fossem os meus gemidos e a roupa rasgada e imunda e o claudicar incessante e a cara carcomida eu teria passado desapercebido o resto da noite. Dor, eu só sentia quando andava, mas não podia parar de andar, e quando ria, mas não conseguia parar de rir. Mas parei, no momento em que vi outra cena de brutalidade. Milhões de reais em impostos que deveriam estar sendo destinados a melhorias no sistema de saúde, à segurança pública e à educação, vinham sendo desviados a muitas décadas, para manter regalias e privilégios de políticos e seus cupinchas, enquanto muita gente adoecia, morria, perdia entes queridos e crescia recebendo uma educação ridícula, correndo o risco, inclusive, de no futuro, se tornarem vândalos, ou pior, policiais despreparados, mal remunerados e entorpecidos pelo falso poder que a posse de uma arma de fogo tende a gerar!

Era muito duro saber que eu, ali, naquele exato momento, patrocinava tudo aquilo, comprando uma latinha de cerveja (mais ou menos metade do valor do precioso líquido é referente a impostos. Uma violência!). Mas eu estava ali pra me divertir e novamente, fiz vistas grossas. Foi chato que tomei apenas um quarto da latinha, visto que metade era imposto e da outra metade, babei metade, já que a metade direita da minha boca esfolada não respondia mais aos meus comandos, perdendo a percepção de conteúdo.

As meninas passaram de protegidas a pagens, me acompanhando com olhar piedoso, mas Fátima e Thaísa ainda rachavam o bico. Era lindo ver tanta gente se reunindo para apreciar a arte. Era lindo notar também que, muito daquele clima bom, se devia ao simples fato de que as pessoas se sentiam dignas e cidadãs, apenas por poderem caminhar à noite, em segurança, pelas ruas de bela arquitetura do centro de São Paulo. Era lindo perceber pessoas se sentindo bem por estarem cercadas de outras pessoas que priorizavam a paz. Não deu para precisar em números exatos, mas pelos meus cálculos, a humanidade tem mais pessoas boas do que ruins. Famílias com bebês, casais de todos os sexos, cachorros em colos e em coleiras, crianças brincando e rindo felizes… certo, quando me viam, as crianças choravam, mas não as culpo.

Já era quase meia noite e graças ao meu senso de orientação estávamos pertinho da Praça da República, porém o pior estava por vir. Enquanto atravessávamos a rua, do outro lado da linha do Equador, um país muito rico e poderoso continuava investindo somas astronômicas na indústria bélica, financiando dois lados de uma mesma guerra, vendendo armas a países amigos, já com o intuito de logo mais, torná-los inimigos, impondo sua cultura de violência e competição, produzindo armas nucleares mesmo depois de destruir e mudar toda a cultura de um outro país de riquíssima cultura, espionando não se sabe mais quem, matando à revelia de julgamentos e ajudando pessoas do mundo todo a se matarem com suas armas. Foi demais para mim. Fiquei chocado e profundamente abatido. Mas as meninas me lembraram que a Vanessa já ia começar, e que estávamos ali para nos divertir, então fiz vistas grossas para a mais essa barbárie e fui apreciar o show.

Cantamos e dançamos com pessoas que não conhecíamos. Pensei que não era impossível que o mundo passasse a buscar momentos de união e não de guerra. Nosso destino é raro, mas não tem que ser caro. Nessa nossa estrada, só terá belas praias e cachoeiras, não haverá quem pudesse com a nossa felicidade, ai, ai, ai, ai… não teremos mais medo do escuro e nem do inseguro, não nos deixaremos mais sós, a não ser quando a solidão for bem vinda, não iremos mais querer outra vida, agora que sabemos o que nos faz bem. O vermelho deixará de ser a cor da violência para ser a dos beijos intermináveis, que farão os olhos mudarem de cor. Teremos desejos maiores que os de possuir. Desligaremos nossos celulares. Enquanto o mundo roda em vão, gostaremos de nos ver sorrindo. Notaremos que tudo pode retroceder. Aconchegaremos no frio, sem que precisem suplicar. O que a gente precisa é tomar um banho de chuva, um banho de chuva que lave todos nossos preconceitos, atrelados à cultura do ódio, da intolerância e da competição. Que beleza de paisagem a desse trem. Sempre será tempo de colhermos fruta madura no vento. O vento que será bem vindo até quando ventar forte, imagine quando for só brisa!*

Falando nisso, volto ao show… Foi ótimo! Uma mulher incrível, com uma voz incrível, cantando lindas músicas. Pode ser que o pessoal do funk, do D.J. Valds-Ney e as Potranca prefira outra tipo de som, mas não nos odiamos nem nos ferimos por isso. Me machuco sozinho mesmo.

Acabado o show, voltamos. Nesse dia o metrô funcionou 24 horas e por sorte eu já não estava em condição de tomar decisões. Logo mais teríamos aula e fomos para o albergue da juventude onde a Michelle, que vem de Brasília, costuma se hospedar. Me aceitaram, apesar da minha idade e do meu aspecto repugnante. Paguei 40 contos pela diária e mais 5 pelo aluguel de uma toalha de banho. Fui dormir no alojamento coletivo masculino com outros 15 caras fedidos, camas individuais, que fique claro. De manhãzinha, um café reforçado e mais R$ 20,00 por uma fronha. Tive que levá-la comigo, que não houve nem força nem jeito para desgrudar aquele tecido florido da cara. Lânguida face.

*o antepenúltimo parágrafo do texto faz referências às músicas Vermelho; Ai, Ai, Ai; Não me Deixe Só; Vem e Viagem, de Vanessa da Mata. (Luís Fernando Praga)